O
destino do sorteio da Taça das Taças colocara o Maccabi Haifa no caminho, e
fiquei extremamente satisfeito por ter sido destacado para me deslocar a um
país distante e, de certa forma, misterioso. Foi uma longa deslocação num charter que estava totalmente ocupado
pelos jogadores, equipa técnica, adeptos e jornalistas. Nós, da imprensa,
ficámos nos lugares traseiros – onde, naquela altura, se podia fumar – e
assisti, com alguma incredulidade, ao constante vaivém dos jogadores até perto
de nós, para matar o tempo em conversas… ou para “cravar” um cigarro.
Horas depois, aterrámos finalmente
no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, onde passámos horas mortas à espera de
sermos revistados e submetidos a um inquérito, até partirmos de autocarro para
Haifa, no norte e não muito distante da fronteira com o Líbano.
A
revista foi minuciosa, como já disse, mas também teve contornos um tanto ou
quanto estranhos…
-
Posso ver a sua mala?
Respondi
que sim, à vontade.
-
O que está neste saco?
-
São meias…
-
E neste?
-
Hammm… são boxers…
Então,
o zeloso funcionário perguntou-me:
-
Tem consigo algum tipo de arma?
Estive
tentado a perguntar-lhe se o canivete suíço ou o corta-unhas contavam, mas
achei melhor não.
Vista de Haifa a partir do hotel - o Mediterrâneo acaba aqui |
Chegámos
a Haifa à noitinha, foi só tempo de comermos qualquer coisa numa esplanada
perto do hotel, assistir ao treino de adaptação ao relvado e à luz artificial
e, mais tarde, ir até um bar beber qualquer coisa. Foi aqui que deu para
constatar que a população de Haifa estava completamente ocidentalizada, pela
fluência na língua inglesa e pelo modo de vestir. As empregadas de balcão,
então, não se inibiam de ostentar generosos decotes, deixando a descoberto
largos centímetros de pele morena…
No
dia seguinte acordei com o sol a entrar de jorro pela enorme janela do meu
aposento. A vista era magnífica – em frente, o término do Mediterrâneo
praticamente sem ondas; ao lado, o sagrado monte Carmelo. Depois de tomado o
pequeno-almoço, eu e um grupo de colegas começámos a falar sobre o que fazer ao
longo do dia, e rapidamente se chegou à conclusão que estar em Israel e não ir
a Jerusalém era uma oportunidade irrecusável. Fizemos as diligências
necessárias e fretámos um táxi com sete lugares e, apesar da distância, havia
tempo – o jogo era só à noite.
A viagem foi longa, pelo muito
trânsito e pelo estado degradado de algumas estradas mas, ao fim de umas
quantas horas, lá chegámos. Não havia propriamente planos, pelo que nos
limitámos a seguir os grupos de turistas que, certamente, iriam visitar os
lugares mais emblemáticos. Foi assim que em breve vislumbrámos o Muro das
Lamentações, o único troço da muralha que restava do antigo templo do rei
Salomão. O acesso tinha de obedecer a alguns protocolos: era obrigatório o uso
da kippah, aquele chapeuzinho para
cobrir a cabeça – eram feitos de papel e distribuídos gratuitamente – e havia
uma distinção sexista: homens para o lado esquerdo, mulheres para o lado
direito. Aproximei-me da parede de pedra e depressa percebi o porquê da sua
designação: ao meu lado, um sacerdote de hábito negro, com longos cabelos e
barba comprida, rezava algo ininteligível e, de seguida, batia com a testa na
parede. Olhei à volta e muitos mais faziam o mesmo. Certo, por isso deve ser
mesmo o muro das lamentações.
Fiquei
um pouco impressionado e dirigi-me para um espaço escuro que ladeava uma das
alas do muro – era uma sala repleta de sacerdotes sentados em bancos de madeira
e que liam a Tora em murmúrios, mas sempre num curioso movimento: balançavam
para a frente e para trás enquanto liam e, após alguns minutos, levantavam-se e
sempre movimentando a cabeça, diziam orações. Todos faziam o mesmo – quase parecia a “Onda” do Mundial do México. Mais
uma vez fiquei impressionado, pelo clima místico do lugar e pela solenidade do
momento. À saída, voltámos a juntar-nos e começámos a percorrer as velhas
vielas, até depararmos com outro grupo de turistas que se amontoavam a
espreitar qualquer coisa. Com curiosidade, aproximámo-nos. Era um buraco, uma
espécie de gruta e, assim que apanhei uma nesga, espreitei também – mas era
demasiado escuro e não consegui ver nada. Só depois, em conversa com um turista
alemão, percebi que era o Santo Sepulcro, o lugar onde, supostamente, Cristo foi
enterrado. Wunderbar!, exclamou o meu
interlocutor. Acredito, mas também gostava de ter visto alguma coisa.
Ruelas do bairro palestiniano de Jerusalém |
Avistámos a doirada Cúpula da Rocha,
passámos ao lado do Monte das Oliveiras, mas como a sede e o cansaço tomaram
conta de nós, resolvemos abancar numa esplanada no bairro palestiniano. Em cada
esquina havia um soldado de metralhadora em punho e, apesar do clima um tanto
ou quanto intimidante, isso tranquilizou-nos. Bebemos, comemos, falámos,
assistimos ao corrupio de gentes, fomos aliciados constantemente por vendedores
de bugigangas e convites para entrar em casas que vendiam tapetes.
Era hora de regressar, mas meti na
cabeça que não queria sair de Jerusalém sem uma recordação. Nem de propósito: a
determinada altura, passa por mim um vendedor ambulante e eu fiquei de olho nas
cafias e no egal, aqueles panos axadrezados que são utilizados na cabeça e a
respectiva tira. Deu-me um preço, mas eu sabia de antemão que teria de
regatear, e andámos ali à volta de algumas contas até que decidi fechar o
negócio. Saí dali todo contente com o souvenir,
considerando-o uma verdadeira pechincha – ideia que mais tarde foi desfeita
quando, inconsolável, vi uma igual à venda numa loja do aeroporto de Telavive
por mais de metade do preço…
A
viagem de regresso a Haifa foi penosa. Mais trânsito, mais calor, mas
pessoalmente muito mais rápida do que supunha: estendi-me ao comprido no banco
de trás que estava vago e adormeci profundamente, só acordando às portas da
cidade. Já refeito do torpor, foi só tempo de ir ao hotel e rumar para o
estádio, que nessa altura já estava repleto de adeptos. O jogo foi sofrível e
pouco emocionante, saldando-se por um 0-0 (que seria corrigido em Alvalade com
um 4-0 final) e, antes de este ter terminado, alinhavei as últimas linhas da
crónica e enviei-a para a redacção em Lisboa. Seguimos depois para Telavive e
entrámos a bordo do charter e,
durante a longa viagem, fui recuperando as imagens de Jerusalém, percebendo que
não é por acaso que é a cidade sagrada para três religiões. A propósito de
três, diga-se que a cafia e o egal do free-shop
eram três vezes mais baratos do que o que comprara em Jerusalém. Ficou-me de
emenda… ou não?