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28 abril 2015

Lamentações em Jerusalém

Antes de ingressar na “Mundial”, efectuei a última reportagem ao serviço da “Gazeta dos Desportos”, acompanhando, uma vez mais, a equipa do Sporting numa deslocação ao estrangeiro. Estávamos em 1995.
O destino do sorteio da Taça das Taças colocara o Maccabi Haifa no caminho, e fiquei extremamente satisfeito por ter sido destacado para me deslocar a um país distante e, de certa forma, misterioso. Foi uma longa deslocação num charter que estava totalmente ocupado pelos jogadores, equipa técnica, adeptos e jornalistas. Nós, da imprensa, ficámos nos lugares traseiros – onde, naquela altura, se podia fumar – e assisti, com alguma incredulidade, ao constante vaivém dos jogadores até perto de nós, para matar o tempo em conversas… ou para “cravar” um cigarro. 
            Horas depois, aterrámos finalmente no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, onde passámos horas mortas à espera de sermos revistados e submetidos a um inquérito, até partirmos de autocarro para Haifa, no norte e não muito distante da fronteira com o Líbano.
A revista foi minuciosa, como já disse, mas também teve contornos um tanto ou quanto estranhos…
- Posso ver a sua mala?
Respondi que sim, à vontade.
- O que está neste saco?
- São meias…
- E neste?
- Hammm… são boxers
Então, o zeloso funcionário perguntou-me:
- Tem consigo algum tipo de arma?
Estive tentado a perguntar-lhe se o canivete suíço ou o corta-unhas contavam, mas achei melhor não.

Vista de Haifa a partir do hotel - o Mediterrâneo acaba aqui
Chegámos a Haifa à noitinha, foi só tempo de comermos qualquer coisa numa esplanada perto do hotel, assistir ao treino de adaptação ao relvado e à luz artificial e, mais tarde, ir até um bar beber qualquer coisa. Foi aqui que deu para constatar que a população de Haifa estava completamente ocidentalizada, pela fluência na língua inglesa e pelo modo de vestir. As empregadas de balcão, então, não se inibiam de ostentar generosos decotes, deixando a descoberto largos centímetros de pele morena…
No dia seguinte acordei com o sol a entrar de jorro pela enorme janela do meu aposento. A vista era magnífica – em frente, o término do Mediterrâneo praticamente sem ondas; ao lado, o sagrado monte Carmelo. Depois de tomado o pequeno-almoço, eu e um grupo de colegas começámos a falar sobre o que fazer ao longo do dia, e rapidamente se chegou à conclusão que estar em Israel e não ir a Jerusalém era uma oportunidade irrecusável. Fizemos as diligências necessárias e fretámos um táxi com sete lugares e, apesar da distância, havia tempo – o jogo era só à noite.
            A viagem foi longa, pelo muito trânsito e pelo estado degradado de algumas estradas mas, ao fim de umas quantas horas, lá chegámos. Não havia propriamente planos, pelo que nos limitámos a seguir os grupos de turistas que, certamente, iriam visitar os lugares mais emblemáticos. Foi assim que em breve vislumbrámos o Muro das Lamentações, o único troço da muralha que restava do antigo templo do rei Salomão. O acesso tinha de obedecer a alguns protocolos: era obrigatório o uso da kippah, aquele chapeuzinho para cobrir a cabeça – eram feitos de papel e distribuídos gratuitamente – e havia uma distinção sexista: homens para o lado esquerdo, mulheres para o lado direito. Aproximei-me da parede de pedra e depressa percebi o porquê da sua designação: ao meu lado, um sacerdote de hábito negro, com longos cabelos e barba comprida, rezava algo ininteligível e, de seguida, batia com a testa na parede. Olhei à volta e muitos mais faziam o mesmo. Certo, por isso deve ser mesmo o muro das lamentações.
Fiquei um pouco impressionado e dirigi-me para um espaço escuro que ladeava uma das alas do muro – era uma sala repleta de sacerdotes sentados em bancos de madeira e que liam a Tora em murmúrios, mas sempre num curioso movimento: balançavam para a frente e para trás enquanto liam e, após alguns minutos, levantavam-se e sempre movimentando a cabeça, diziam orações. Todos faziam o mesmo – quase parecia a “Onda” do Mundial do México. Mais uma vez fiquei impressionado, pelo clima místico do lugar e pela solenidade do momento. À saída, voltámos a juntar-nos e começámos a percorrer as velhas vielas, até depararmos com outro grupo de turistas que se amontoavam a espreitar qualquer coisa. Com curiosidade, aproximámo-nos. Era um buraco, uma espécie de gruta e, assim que apanhei uma nesga, espreitei também – mas era demasiado escuro e não consegui ver nada. Só depois, em conversa com um turista alemão, percebi que era o Santo Sepulcro, o lugar onde, supostamente, Cristo foi enterrado. Wunderbar!, exclamou o meu interlocutor. Acredito, mas também gostava de ter visto alguma coisa.
Ruelas do bairro palestiniano de Jerusalém
            Avistámos a doirada Cúpula da Rocha, passámos ao lado do Monte das Oliveiras, mas como a sede e o cansaço tomaram conta de nós, resolvemos abancar numa esplanada no bairro palestiniano. Em cada esquina havia um soldado de metralhadora em punho e, apesar do clima um tanto ou quanto intimidante, isso tranquilizou-nos. Bebemos, comemos, falámos, assistimos ao corrupio de gentes, fomos aliciados constantemente por vendedores de bugigangas e convites para entrar em casas que vendiam tapetes.
            Era hora de regressar, mas meti na cabeça que não queria sair de Jerusalém sem uma recordação. Nem de propósito: a determinada altura, passa por mim um vendedor ambulante e eu fiquei de olho nas cafias e no egal, aqueles panos axadrezados que são utilizados na cabeça e a respectiva tira. Deu-me um preço, mas eu sabia de antemão que teria de regatear, e andámos ali à volta de algumas contas até que decidi fechar o negócio. Saí dali todo contente com o souvenir, considerando-o uma verdadeira pechincha – ideia que mais tarde foi desfeita quando, inconsolável, vi uma igual à venda numa loja do aeroporto de Telavive por mais de metade do preço…
           

A viagem de regresso a Haifa foi penosa. Mais trânsito, mais calor, mas pessoalmente muito mais rápida do que supunha: estendi-me ao comprido no banco de trás que estava vago e adormeci profundamente, só acordando às portas da cidade. Já refeito do torpor, foi só tempo de ir ao hotel e rumar para o estádio, que nessa altura já estava repleto de adeptos. O jogo foi sofrível e pouco emocionante, saldando-se por um 0-0 (que seria corrigido em Alvalade com um 4-0 final) e, antes de este ter terminado, alinhavei as últimas linhas da crónica e enviei-a para a redacção em Lisboa. Seguimos depois para Telavive e entrámos a bordo do charter e, durante a longa viagem, fui recuperando as imagens de Jerusalém, percebendo que não é por acaso que é a cidade sagrada para três religiões. A propósito de três, diga-se que a cafia e o egal do free-shop eram três vezes mais baratos do que o que comprara em Jerusalém. Ficou-me de emenda… ou não?

20 abril 2015

Com Figo em Barcelona

          Ao fim de algo como quatro meses, fiquei extremamente aliciado por um convite para integrar a redacção de um novo projecto. A ideia era inovadora e ambiciosa, agradava-me a restante equipa e o tipo de contrato – passaria a integrar os quadros da empresa – eram altamente estimulantes. Não hesitei e abracei o repto com entusiasmo, até porque, sem o saber na altura, a "Gazeta dos Desportos" encerraria definitivamente escasso tempo depois.
            Tudo começou no Café In, à beira-Tejo, depois de fecharmos a edição da Gazeta. O director, Vítor Galvão Correia, perguntou-me, juntamente com o Gonçalo Pereira, que me acompanhava desde os tempos do jornal “Sporting”, se queríamos ir comer alguma coisa e até porque tinha algo para nos falar. Já passava da meia-noite e, umas sandes depois, disse-nos numa voz arrastada: “Tive reuniões com o administrador de uma editora que quer lançar uma revista desportiva do género destas”, mostrando, então, alguns exemplares da alemã “Sports Live”. Muito bom. “Mas”, continuou, “a ideia é fazer isto à semelhança da Volta ao Mundo, não sei se conhecem”.
           Claro que conhecia: era a primeira revista de viagens lançada em Portugal e já lera algumas que o meu pai comprara. “Pois bem”, continuou, “a editora é a mesma da “Volta ao Mundo” e, depois de algumas conversas com o administrador Paulo Ferreira, vou ficar com o cargo de director e fiquei de escolher uma equipa. Portanto, queria saber se vocês estão interessados…”
Só faltou andar aos saltos de contentamento pela esplanada fora. Óbvio que sim, claro que sim! Selámos o acordo com um aperto de mão e eu e o Gonçalo levantámos as mãos para um “give me five”. Semanas depois, tivemos as primeiras reuniões, começámos a delinear ideias e fiquei a conhecer os meus colegas da primeira equipa da “Mundial”: os já conhecidos Vítor Correia, o fotógrafo Nuno Correia e o Gonçalo Pereira, e os elementos que não conhecia – o mentor do projecto gráfico Henrique Cayatte, os designers Paulo Barata Côrrea e José Guilherme, a ilustradora Luísa Barreto e a secretária de redacção Maria José.

Para o primeiro número ficou decidido, sem grandes dificuldades, dar a capa a Luís Figo, a maior estrela lusa do momento, e que se tinha transferido para o F.C. Barcelona. Tudo ficou tratado – contacto com o jogador, voo, aluguer de automóvel e hotel. Mas a minha viagem não foi directamente para a cidade condal: aproveitando o facto de o Barcelona ir jogar em Madrid contra o Atletico local, apanharia o avião para a capital espanhola, iria assistir ao jogo, dormiria num hotel e, na manhã seguinte, deslocar-me-ia de automóvel até à capital catalã, onde iria ficar duas semanas. Ia sozinho, pois o Nuno Correia só se juntaria dias mais tarde.
Tudo correu como o previsto… “mais ou menos”. O voo foi tranquilo, aluguei o automóvel no aeroporto e, como era cedo, decidi ir primeiro ao hotel deixar as malas. E surgiu o primeiro contratempo: tinha o nome e o endereço, mas não fazia a mais pequena ideia onde era – e, na altura, não havia GPS...
No aeroporto deram-me um mapa da cidade e a localização do hotel, mas andei às voltas sem saber onde me encontrava, encontrando ruas de sentido único e vielas sem saída. De dez em dez minutos pedia informações, algumas contraditórias, até que, por fim, lá dei com aquilo. Era num bairro esconso e, quando entrei, tudo me parecia de séculos passados. Fiz o respectivo check-in e não deixei de reparar em algumas velhas e roliças matronas sentadas no sofá do átrio, com amplos decotes e mirando-me de alto a baixo. Quando fui para os elevadores, tentei fingir que não tinha ouvido os seus comentários, dos quais o mais agradável foi “mira, que guapo!”, seguido de sonoras gargalhadas.
O quarto era uma águas-furtada, com uma minúscula janela que dava para as traseiras do prédio e um espaço suficiente para apenas albergar uma cama e uma mesinha de cabeceira. Faltavam horas para o jogo e tentei descansar, mas não consegui – os sons de cariz sexual impediam-no. Dado que não conseguia passar pelas brasas, resolvi ir mais cedo para o estádio pois, pelo menos, sempre me entretinha em vez de estar ali no quarto. Como suspeitei que iria ser novamente o cabo dos trabalhos dar com o hotel no regresso, decidi ir de metro. Passei diversas estações, mudei três vezes de linha e, por fim, dei com o Vicente Calderón diante de mim. Já era noite e já havia algum movimento em redor do estádio, mas decidi dar uma volta ao recinto, ficando surpreendido por uma das bancadas estar por cima do rio Manzanares. Até que entrei e, mais uma vez, dei por mim surpreendido: o estádio, por dentro, era muito maior do que deixava antever de fora e, minuto após minutos, as bancadas iam ficando repletas. Quando as equipas entraram em campo, 60 mil pessoas enchiam-nas. O jogo não teve grande história, dada a flagrante superioridade do Atleti, saldando-se o resultado por um 3-1 final.
Finda a partida, regressei ao hotel e voltei a ver as velhas matronas no sofá – se não eram as mesmas, eram iguais, mas desta vez com propostas mais concretas que aqui me recuso a referir. Subi e deitei-me, alimentado pela vontade de partir na manhã seguinte para Barcelona.
           
               Acordei entusiasmado. Foi só tempo de arrumar a mala, sorver o pequeno-almoço e fazer-me à estrada Ao longo de qualquer coisa como 600 quilómetros fui vendo o desfilar da paisagem, atravessando a aridez de Aragão, cruzando o Ebro, parando aqui e ali para retemperar as energias com um café solo até entrar, depois de Saragoça, na auto-estrada da Catalunha. Já era noite, mas o fim da etapa estava à vista.
            Passada a portagem, surgiu-me uma dúvida: havia uma bifurcação e não sabia qual delas tomar… Não sei porquê, talvez pela sugestão do nome, arrisquei na saída para a avenida Diagonal, uma decisão ao calhas mas correcta, uma vez que percebi que a artéria atravessava quase toda a cidade. Estes primeiros momentos em Barcelona foram deslumbrantes: O Natal era dali a três semanas e tudo estava iluminado. Reparei particularmente na fachada do El Corte Inglès, totalmente iluminada com um dos cenários da “Guerra das Estrelas” – La Guerra de las Galaxias, em castelhano. Tinha a morada do hotel, mas senti alguma dificuldade inicial em atentar que as calles eram rúas, e distinguir os carrer das avingudas e as ramblas das plaças. Segundo o mapa, o hotel ficava no bairro de L’Eixample, não muito longe das ramblas, mas não havia meio de atinar com o caminho. Andava às voltas, sabia que estava perto, mas as ruas de sentido obrigatório impediam-me de lá chegar. A determinada altura senti-me meio perdido mas, depois de perguntar aqui e ali, lá acabei por chegar. A primeira impressão do hotel foi boa, mas também, depois daquela experiência em Madrid, qualquer coisa me servia...

As luzes da Avenida Diagonal nas vésperas do Natal 

            Saí do hotel para comer qualquer coisa e passear pelos arredores. Percebi, então, que a localização era privilegiada – perto das ramblas, da Plaça de Catalunya e do Passeig de Gràcia, onde me deslumbrei com as fachadas da Casa Millá, ou La Pedrera, e Batlló, obras do arquitecto Antoni Gaudí. Perto de uma delas, não resisti a entrar numa taperia que seria, a partir de então, o meu lugar eleito para comer. Não havia refeições propriamente ditas, era tudo à base de tapas, raciones e bocadillos, enfim, inúmeros petiscos para “picar”. O “Tapa-Tapa” passou a ser um ponto de paragem obrigatório.


            Voltei para o hotel, porque no dia seguinte teria de começar o trabalho bem cedo, pois tinha de me inteirar sobre toda a realidade do F.C. Barcelona. Para já, o Nuno Correia ainda não tinha chegado e, depois, Figo não estava presente porque tinha ido a Portugal tratar de uns assuntos. Na manhã seguinte rumei para o estádio, que era a meio da longuíssima avenida Diagonal, mas demorei bem mais tempo do que estava à espera – o trânsito era infernal. Quando cheguei, olhei para o exterior e dei por mim a pensar que estava a olhar para um dos mais míticos estádios do Mundo. E mais em sentido fiquei – ao ponto de sentir um arrepio na espinha – quando me sentei na bancada: mesmo vazio, o Camp Nou era imponente. Tentei imaginar como seria com 100 mil adeptos…
            Observei o treino e, no fim, aguardei na sala de imprensa. Nesse entretém, falei com os diversos jornalistas presentes, estabeleci contactos – todos foram prestáveis e prontificaram-se a ajudar no que fosse preciso – recolhi depoimentos sobre o que achavam do jogador português e, por último, assisti à conferência de imprensa, quase toda ela em catalão. Deu para perceber algumas coisas, mas…


            Até que me surgiu um rosto bastante conhecido: José Maria Bakero, um dos grandes jogadores que tinham passado pelo clube e que agora exercia funções de dirigente. Não perdi a ocasião de o puxar para o lado e o entrevistar. Estava satisfeito até então, para primeiro dia não tinha sido mau, mas decidi ficar o resto do dia pelas imediações do estádio – e fiquei extremamente impressionado pelas infraestruturas do clube. Ao lado, havia o mini-estadi, uma réplica de Camp Nou em pequeno, que também servia para treinos e para os jogos da equipa B, um pouco mais à frente o Palau Blau Grana, o pavilhão para as restantes modalidades desportivas e, com tudo ligado por pontes pedonais, ainda havia o edifício-sede. Um verdadeiro mundo, que atestava a grandeza do clube, e que pude comprovar com a visita ao museu do Barça, um dos mais visitados da cidade. E comecei imediatamente a engendrar que, além da reportagem com Luís Figo, também se podia fazer um trabalho paralelo em relação ao F.C. Barcelona.

Camp Nou, Mini-Stadi e Palau Blau-Grana
         



À noite alarguei a minha área de passeio. Desci (e subi várias vezes) as ramblas, fui ver o mar passando pelo Passeio de Colombo e abanquei numa esplanada, apesar do frio, a beber um café e a observar o que me rodeava. Barcelona, definitivamente, tinha-me caído no goto.

            Na manhã seguinte fui buscar o Nuno ao aeroporto, almoçámos e fomos para mais um treino que, nesse dia, era à tarde. O aprontamento era num relvado secundário, o que permitia mais proximidade aos jogadores. E vimos ali, a poucos metros de distância, todos os craques que, nessa altura, em 1995, compunham o plantel da equipa, além do treinador Johan Cruyff. Um deles, Figo, acenou-nos quando nos viu e, por gestos, combinámos falar no final do treino.
            O encontro foi feito de sorrisos e cumprimentos, pois já nos conhecíamos dos tempos do Sporting e, logo ali, ficou acertado o jantar. Entrámos no seu Mercedes – curiosamente com matrícula de Madrid – e entrámos num dos seus restaurantes preferidos, onde era cliente habitual, sendo cumprimentado efusivamente por todos os empregados. Um deles fez-lhe um pedido: “Já tenho as camisolas dos clubes onde jogaste, mas não tenho a da selecção de Portugal…”. Figo alertou-o: “No es muy guapa…”. O empregado disse que não se importava e encaminhou-nos para a mesa num sítio mais reservado. O jantar foi bastante agradável, regado a champanhe, trocámos memórias e saciámos novidades e, sobretudo, explicámos o que pretendíamos fazer nos dias seguintes.
            Na manhã seguinte, eu e o Nuno fomos dar um passeio por Barcelona. Fomos à Sagrada Família, que me impressionou imenso pela envergadura, pela altura e pela decoração, repleta de guindastes para concluir a obra que a morte prematura de Gaudí não permitiu – sentindo-me completamente frustrado por não a conseguir fotografar por inteiro. E ainda fomos a Barceloneta, almoçámos no Porto Olímpico, subimos a Montjuic e visitámos o estádio olímpico, onde na altura jogava o outro clube da cidade, o Espanyol.





As duas semanas deram para acompanhar o jogador português, para passear por Barcelona, para assistir aos treinos e para assistir a mais um jogo, frente ao Sporting Gijón. E foi nessa noite que vi o Camp Nou quase repleto, foi nessa noite que ouvi pela primeira vez o hino do Barça e foi ainda nessa noite que escutei as músicas entoadas pelos hinchas dedicadas a Figo. O português tinha Barcelona a seus pés e eu, quando parti, senti que a cidade também me tinha ficado no coração. Admito que, então, fiquei com um fraquinho pelo FC Barcelona, rapidamente desfeito quando, anos depois, Cristiano Ronaldo se mudou de armas e bagagens para o Real ;Madrid. Hoje, não gosto do F.C. Barcelona, mas continuo a gostar, e muito, de Barcelona.

16 abril 2015

Avalanche de golos no Liechtenstein

Tenho de admitir que as minhas primeiras viagens além-fronteiras foram, digamos assim, atrás de uma bola de futebol.
Na sequência de quem dava os primeiros passos na carreira, depois do jornal “Sporting”, fui aliciado por um convite de um jornal à escala nacional, a já extinta “Gazeta dos Desportos”. Era um ritmo diferente ao que estava habituado, implicando estar diariamente na redacção, sobretudo durante as tardes, e só sair alta noite quando o jornal já tinha a edição fechada. Mas gostei da experiência, daquilo de trabalhar numa redacção com diversos jornalistas e sentir o stress de escrever as notícias a tempo e horas. Quem me acompanhou nessa transição foi o antigo chefe de redacção do “Sporting”, o saudoso Galvão Correia, então investido na função de director, o fotógrafo Nuno Correia, mais como colaborador esporádico, e Gonçalo Pereira, do qual nunca me desliguei até hoje desde os tempos do semanário “leonino”.
Estava há pouco tempo na “Gazeta” quando me é entregue o primeiro trabalho de vulto: acompanhar a selecção nacional ao Liechtenstein, onde iria disputar um jogo da fase de apuramento para o Campeonato da Europa de 1996, que teria lugar em Inglaterra.

A ideia de acompanhar a selecção e logo para um país que sempre me suscitou curiosidade, deixou-me extremamente entusiasmado. Só que o jornal apenas conseguiu os vouchers para o dia seguinte em relação à partida da equipa e dos repórteres dos outros jornais.
“Não te preocupes: chegas ao aeroporto de Zurique, terás lá alguém à tua espera que te levará até ao hotel. E boa viagem!” Saí do aeroporto da Portela confiante e a viagem até Zurique correu lindamente, apenas com um senão: depois de ter desembarcado, não tinha ninguém à minha espera. Deixei passar meia hora, uma hora, hora e meia… e percebi que teria de me desenrascar por minha conta e risco. Ainda no aeroporto, perguntei a um funcionário o que teria de fazer para ir para o Liechtenstein e, diligentemente, este informou-me que bastaria descer as escadas rolantes para o piso inferior, para a gare dos comboios, dirigir-me a um guichet e comprar o bilhete. Quando lá cheguei, pedi um bilhete para Triesenberg, o local onde estavam hospedados os restantes jornalistas. A funcionária foi extremamente prestável:
 ̶  Não tem nada que saber! Vai apanhar o comboio na linha 2, que parte daqui a 7 minutos e, três quartos de hora depois, há-de chegar à fronteira, onde desembarca. Resta apanhar a camioneta do lado de lá da linha do comboio, que parte 10 minutos depois e chegará a Triesenberg em mais 8 minutos.


 Lago de Zurique

E, espantosamente, assim foi. Exactamente assim. Compreendi, então, o porquê da precisão dos relógios suíços. Entrei no comboio, vi desfilar pela janela o lago de Zurique, as pastagens verdejantes e alguns cumes alpinos. Cheguei à fronteira, apanhei a camioneta e foi nela que atravessei a ponte sobre o rio Reno que separa os dois estados. A primeira paragem foi em Vaduz, a pequena capital que consiste numas quantas ruas mas que, para espanto meu, até tem semáforos num cruzamento – “o” semáforo! Depois, foi seguir montanha acima até Triesenberg.
Entrei no pequeno mas acolhedor hotel – cuja proprietária era uma esquiadora detentora de uma medalha do bronze nuns Jogos Olímpicos de Inverno – e aprestei-me para fazer o check-in. Cumpridas as formalidades, dirigi-me em inglês ao funcionário para saber determinados pormenores, quando este me responde em português. Franzi o sobrolho, mas logo fiquei com um sorriso estampado no rosto quando li o seu nome gravado num crachá que tinha ao peito: José Silva. Mesmo assim, ainda fiquei surpreendido quando o senhor José Silva falou com outros funcionários em português e estes responderam na língua de Camões. À excepção da dona, todos ali eram portugueses!


O hotel Oberland, em Triesenberg

Fui pousar as malas ao quarto e saí para a rua. Dali, da entrada do hotel, os meus olhos açambarcavam o panorama em redor. Tudo era verde e florido, tudo estava arranjado, tudo estava imaculadamente limpo. O Liechtenstein é assim – um país em miniatura que ocupa a vertente de uma montanha, mas que é um mimo. Começa lá em baixo, em Vaduz, e acaba no topo. Do lado de lá do cume, já é Áustria.

Apesar de apenas ter permanecido três escassos dias, o que não faltaram foram peripécias. Na véspera do dia do jogo, eu e um grupo de colegas fomos almoçar a um restaurante em Vaduz e nenhum de nós conseguiu conter a admiração pelos carros que estavam no parque de estacionamento: lado a lado, conviviam Ferraris, Lamborghinis, Porsches, Maseratis, Jaguares. Grandes bólides, o que nos levou a inquirir para quê esta necessidade num país tão pequenino e com limites de velocidade apertadíssimos. Será que passavam a vida a subir e a descer a montanha?


Triesenberg

            Nesse mesmo dia, decidimos prolongar a estadia em Vaduz, que, diga-se, não tem muito para ver. E ao fim da tarde, quase já noite, passámos pelo hotel onde estava instalada a selecção. Umas conversas soltas com os jogadores e, como a fome começou a apertar, perguntámos ao balcão se havia alguma coisa que se pudesse comer. A resposta veio em português̶:
̶ Pode-se arranjar uma sandochas, com queijo e fiambre  ̶ , disse-nos o prestável funcionário João Gomes. No fim do repasto, perguntámos ao “senhor João” quais os horários das camionetas que iam para cima, para Triesenberg. Cofiou o bigode pensativamente e disse que a última passava por ali dentro de 20 minutos. Óptimo, estamos bem a tempo.
Fomos para a paragem e ficámos à espera. Cinco minutos… Dez minutos… Meia hora… e nada de camioneta. Uma hora depois desistimos e decidimos encetar a caminhada a pé montanha acima, pela estrada. De vez em quando animava-se a alma quando se ouvia o som de um motor e as luzes de faróis, mas rapidamente se desfaziam as ilusões quando percebíamos que os carros não paravam. O frio devia ser grande, mas não o sentíamos – deitávamos os bofes de fora perante tamanha empreitada. Já não nos dávamos ao trabalho de esticar os polegares a pedir boleia quando, inesperadamente, um carro parou a uns metros à frente. Corremos para lá e foi com alegria que ouvimos o condutor:
̶  Triesenberg? Hop in.
Entrámos os três e não escondíamos o riso pela peripécia. De súbito, o nosso “salvador” vira-se para trás e pergunta-nos:
 ̶  São portugueses?   ̶  assim mesmo, em português! Ele também, como foi fácil de adivinhar, apenas mais um dos milhares que ali labutam. Despedimo-nos, à porta do hotel, com desejos mútuos de vitória para o jogo do dia seguinte.
            No dia do jogo, o principado estava em festa. Acorreram milhares de visitantes, emigrantes portugueses da ali, mas também muitos outros vindos da vizinha Suíça e do Luxemburgo, ao ponto de o estádio de Vaduz ter sido reforçado com uma bancada suplementar. Instalado na improvisada bancada de imprensa, foi com regozijo que vi milhares de bandeiras verdes e rubras serem agitadas, dezenas de faixas com incentivos a Portugal e a alegria daquela gente por, durante 90 minutos, se sentirem mais perto da pátria. É um sentimento que me assalta sempre que estou fora e mais sinto o apelo de uma certa portugalidade. E ali, em que ¾ do estádio eram ocupados por apoiantes portugueses, também eu me senti contagiado por esta onda. Quanto ao jogo em si, pouco há que acrescentar: uma esmagadora vitória por 0-7 – uma autêntica avalanche de golos nos Alpes.
            Findo o jogo, havia que rumar o mais rapidamente possível para o hotel – as redacções estavam à espera dos relatos dos enviados-especiais. Peguei no portátil e, antes de começar a escrever, olhei à minha volta: todos os meus colegas estavam nos respectivos quartos, mas de portas abertas, que permitia descortinar a azáfama colectiva – e sorri de satisfação.
Uma vez despachado o serviço, a fome apertou e de que maneira, pois nenhum de nós, à excepção de Gabriel Alves, da RTP, havíamos jantado. Simpaticamente, alguém do hotel conseguiu providenciar-nos umas quantas sandes de presunto, que nos pareceram um manjar dos deuses, seguidas de um delicioso gelado caseiro de frutos silvestres. Estávamos neste entretém quando, de súbito, somos alertados pelo som de foguetes, e corremos para a varanda. A vista era extraordinária: um fantástico fogo-de-artifício cobria os céus do Liechtenstein.
Ficámos ali extasiados a olhar, quando se abeirou a proprietária do hotel:
̶ Hoje é feriado nacional, é o Dia do Príncipe. Há fogo-de-artifício, o povo sai à rua e o castelo é aberto a todos os súbditos que o queiram visitar e cumprimentar. Ah, e todo o palácio está repleto de iguarias para os visitantes!
Foi esta a última visão que tive do Liechtenstein. Uma espécie de país dos contos de fada, com direito a príncipes, princesas e tudo. Além dos Lamborghinis e dos Maseratis, claro.

09 abril 2015

Holanda (parte II) - ou como os holandeses conseguem ser irritantes

Voltei mais vezes à Holanda e em curto espaço de tempo. Um ano depois da primeira viagem, novamente num estágio de pré-época, no mesmo local, quase com os mesmos jogadores, mas com um treinador diferente: Carlos Queiroz.
Do que retenho, além dos treinos e do conhecimento dos arredores, foi um passeio de carro em dia de folga até ao norte. E das multas de excesso de velocidade, que são de tirar um português que se preze do sério: fui autuado porque ia a 103km/h, quando o limite era 100 km/h. Os holandeses são muito rigorosos. Irritantemente rigorosos.
Bem, voltemos ao passeio, que teve passagem por Amesterdão e para a exploração de barco pelos seus canais, e uma incursão a essa fantástica obra de engenharia que é o Grande Dique – através do qual a Holanda conquistou território ao mar –, e ainda por Groningen e Arnhem. Aqui, a visita a dois belos espaços: o Museu ao Ar Livre, que é uma reprodução fiel dos tempos de antanho naquela região, seja em termos arquitectónicos seja no modus vivendi da população local, as suas tradições culturais e costumes; e o Jardim Zoológico, que me impressionou – além dos animais –, pelas inúmeras espécies vegetais que abriga.


O Grande Dique (Afsluitddijk)




Museu ao Ar Livre de Arnhem
Jardim Zoológico de Arnhem

 Mas vida dá muita volta, e lá tive de voltar à Holanda. A última vez foi em 1996 e, apesar de ainda ser dentro da área desportiva, foi de âmbito um tanto ou quanto diferente. Na altura, não havia tantos futebolistas portugueses a actuar lá fora como nos dias de hoje, e os holofotes incidiram sobre uma jovem estrela que tanto prometia mas, que, ao mesmo tempo, parecia encarar o futebol meramente como um hobby – mais que isso, nunca conseguiu descolar a etiqueta de playboy. Certo é que Dani acabou por sair do Sporting e rumar à Holanda, para representar o histórico Ajax, e sempre me convenci que seria o clube ideal para singrar na carreira de futebolista: o emblema de Amesterdão tem regras, tem história e a fama e o proveito de possuir uma das melhores escolas de formação do mundo. A sua contratação foi extremamente mediática e foi com o intuito de apresentar aos leitores a sua vida na Holanda que efectuei a reportagem.
Devido à sobrelotação dos hotéis de Amesterdão, não tive outra opção que não fosse ficar instalado em Utrecht, a qualquer coisa como 50 quilómetros da cidade dos canais e, sabendo-se a quantidade e qualidade das auto-estradas holandesas, a distância era facilmente vencível. Invariavelmente, passávamos os dias a assistir aos treinos e foi nesses instantes que nos apercebemos da extraordinária popularidade do português, sobretudo muito requisitado pelas jovens locais.
O fabuloso ArenA de Amesterdão
O Ajax treinava num relvado ao ar livre ao lado do majestoso ArenA e os futebolistas tinham de atravessar a pé a curta distância que ia dos balneários do estádio até ao campo de treinos. Obviamente que todos eles eram requisitados para autógrafos e fotografias, mas todos se apercebiam quando era Dani: os gritos, os choros, os chamamentos pelo seu nome sobrepunham-se a tudo e todos, era uma loucura, quase histeria.
Encostámo-nos ao corrimão que dava a volta ao relvado e reparámos que a maior parte da tinta estava rasurada por clips e canetas, e as frases eram elucidativas: “Dani, I love you”; “Dani I want you”, e múltiplos desenhos de corações a adornar as frases… E, cada vez que ele tocava na bola, os gritinhos faziam lembrar os concertos dos Beatles décadas atrás.…
Além da reportagem em redor de Dani, sempre tivera muita curiosidade em relação à famosa escola de formação do Ajax e disse-o ao futebolista português. Dani, então, disse-nos que nos levaria lá, mas que teríamos de ter muita cautela pois o local era extremamente recatado, mas lá acabou por nos deixar à porta do edifício.
Entrámos e começámos a percorrer as diferentes áreas: os quartos, o refeitório, as salas de estudos, a biblioteca e as salas teóricas de futebol, onde no quadro de giz estava o sistema táctico do Ajax – era sempre o mesmo, independentemente do escalão, daí que ele seja bastante assimilado desde os escalões de formação até à equipa principal. Extremamente elucidativo. Chegámos a cruzar-nos com alguns jogadores, todos de fato de treino, mas também nos cruzámos com alguém que não queríamos…
Quando estávamos de saída, irrompeu de um gabinete um homem extremamente irado, perguntando-nos com maus modos quem éramos e o que estávamos ali a fazer. Lá lhe explicámos, mas foi aí que ele ficou furioso: fora de si, aos gritos, disse que era proibido estarmos ali, que era um local reservado e exigiu que destruíssemos o rolo de fotografias à frente dele ou que lho déssemos. O Nuno Correia, que me acompanhava na altura, passou-lhe o rolo para a mão, e só mais tarde vim a saber que o rolo estava em branco, pois o verdadeiro tinha sido subtilmente guardado no bolso… Como também viemos a saber quem era tão irascível sujeito: era o director da escola, de seu nome Co Adriaanse, o mesmo que, anos mais tarde, viria a ser o treinador principal do F.C. Porto!

As nossas noites, invariavelmente, eram passadas em Utrecht. E, não sendo uma urbe muito grande, permitiu ficar com o panorama geral da cidade – que, diga-se, caiu-nos bastante no goto. Não era demasiado diferente da generalidade das cidades holandesas que já conhecia, pois contemplava a tradicional praça central engalanada com uma igreja luterana e numerosas esplanadas, ruas alinhadas e imaculavelmente limpas, mas, o que realmente a diferenciava, eram as pontes que atravessam as águas do rio Vecht e o passeio que o ladeava mas que era metros abaixo das ruas, quase ao nível da água. Todos por ali passeavam, todos por ali paravam, todos por ali consumiam algumas horas a beber um copo, a almoçar ou a jantar, porque aquela passerelle que bordejava o canal estava repleta de cafés, bares e restaurantes. Utrecht tem muito da sua essência abaixo do nível das ruas. Vive metros abaixo – mas com uma qualidade de vida muito acima.


As esplanadas à beira-canal de Utrecht

06 abril 2015

Holanda (parte I) e o meu primeiro avião

Ainda hoje me parece grotesco, mas a verdade, verdadinha, é que a minha primeira viagem de avião foi em 1992. Após uma efémera passagem pelo “Semanário Económico”, decidi-me pela veia desportiva ingressando no jornal “Sporting”, em part-time a meias com o ensino e onde, ao fim de alguns meses, fui destacado para acompanhar o estágio dos comandados de Bobby Robson na Holanda.


À porta do hotel em Doorwert: Peixe, Nelson, Pacheco,
Juskowiak e Poejo.
 A viagem da Portela para Schiphol decorreu com tranquilidade, com a equipa e o staff técnico a ocuparem os lugares da frente e os jornalistas cá atrás. Era no tempo em que ainda era permitido fumar nas traseiras do avião e foi com alguma surpresa que assisti à vinda de alguns jogadores até aos nossos lugares para confraternizar… e “cravar” um ou outro cigarrito. Admito que, para mim, esta viagem foi bastante excitante e onde tudo era novidade: o passaporte, o aeroporto, o free-shop, a descolagem vendo as casinhas de Lisboa como peças de Lego, o voo acima das nuvens, a descida assistindo aos férteis terrenos agrícolas lá em baixo como geométricas peças de um puzzle, a aterragem impetuosa e a salva de palmas dos jogadores – um ritual frequente nas viagens de avião.
Cá fora, uma vez recolhida a bagagem, respirei finalmente o ar “estrangeiro”. Mais frio e humidade que em Lisboa, uma chuva miudinha e dei por mim a contemplar o meu primeiro carimbo no passaporte
A viagem de automóvel para Doorwerth – o local do estágio, perto de Arnhem – deu para ter uma ideia geral do país: planuras sempre verdes, moinhos a pintalgarem a paisagem e vaquinhas em barda. E deu ainda para constatar uma realidade: a Holanda pode resumir-se a centenas de auto-estradas, pistas magníficas sem portagem e que a cruzam de lés-a-lés mas que, para nós, tem um enorme óbice – as placas de indicações, escritas naquele imperceptível neerlandês, mas onde acabámos por descortinar um significado: Uit (saída). Certo que a língua inglesa é falada pela esmagadora maioria da população, desde jovens de tenra idade até a velhinhos octogenários, mas, quando eles se expressam na língua local, esqueçam… Parece que todos falam com um trapo enrolado na língua, numa cacofonia de expressões guturais em que o som de um R está sempre presente. Os G, aliás, quando estão entre vogais, também ganham o som R. E descobri, até, que Portugal se pronuncia… “Porturral”!


Doorwerth
Nesse estágio, além dos dois treinos diários, eu e o fotógrafo Nuno Correia ainda conseguimos dar umas saltadas às cidades vizinhas. Andámos por Arnhem, Eindhoven, Maastricht e Sittard, entre outras, e rapidamente chegámos à conclusão que as cidades holandesas são todas iguais: muitas vivendas com vidraças de generosas dimensões de modo a captarem o máximo da exígua luz solar, imensos espaços ajardinados, ruas imaculadamente limpas constantemente bordejadas por pistas pedestres e para velocípedes e uma praça central sempre com uma igreja luterana rodeada por cafés e esplanadas com mesas e cadeiras de vime. São todas assim, à excepção de Roterdão e respectivo porto, e de Amesterdão, a cidade sulcada por canais e que é realmente um caso à parte. Pela arquitectura, pelo cosmopolitismo, pelos museus e pelos monumentos – mas também pelas coffee-shops e pelo Red Light District.

Foram duas semanas pelos Países Baixos, com uma viagem de ida e volta de permeio a Lisboa – para quem nunca tinha andado de avião, fiquei logo calejado com quatro voos em quinze dias! –, assistindo a dezenas de treinos, jogos de carácter particular, jantares entre jornalistas, conversas com jogadores e treinadores no hotel onde estava a equipa e mil e uma peripécias. Robson mostrou-se um conversador nato e que rapidamente granjeou simpatia entre os jornalistas e os futebolistas, mas também se mostrou rigoroso e preciso em relação ao que pretendia impor ao grupo de trabalho. E que grupo, diga-se: Figo, Peixe, Paulo Torres, Nelson, Valkx, Capucho, Filipe, Balakov, Cadete, Juskowiak e Cherbakov, entre outros. E ainda, um jovem promissor que dava os primeiros passos… como treinador – José Mourinho.


À saída para o treino: Manuel Fernandes, Valckx, Cherbakov e José Mourinho

03 abril 2015

O "bichinho" já lá estava





Lembro-me, por volta dos 8 anos de idade, de passar horas a fio a olhar para livros, atlas e colecções de cromos a absorver pormenorizadamente as bandeiras dos países. Ao mesmo tempo, fazia pequenas fichas, escritas à mão, com os dados mais relevantes de todas as nações do mundo: a respectiva bandeira, claro está, pintada a caneta de feltro, a área, o nome da capital, o número de habitantes, a moeda e a língua oficial. Eram estas, à época, as minhas viagens.
Lembro-me, também, da curiosidade que tinha em relação a qualquer coisa que fosse fora do meu “mundo”, que se resumia ao caminho de camioneta casa-escola-casa, uma ou outra viagem de automóvel com os meus pais, e a paisagem que desfilava pela janela do comboio da linha da Beira Baixa, sempre que ia de férias para Castelo Branco e para Sarnadas de Ródão, uma quase incógnita aldeia a 14 quilómetros da capital de distrito. Como ainda recordo, como se fosse hoje, a minha primeira grande “aventura” para fora deste “mundo”: com os meus pais e irmão ao Algarve, esse pedaço de Portugal para mim tão longínquo, e por ter, pela primeira vez, pisado solo estrangeiro em Ayamonte e Isla Canela. Estranhamente, não me pareceu tão diferente do que estava à espera, mas foi inolvidável ouvir alguém falar castelhano.
Mas o que realmente me marcou a vida foi a primeira viagem a sério fora da fronteira. E que iniciação! Tudo foi decidido num ápice, naqueles serões noite dentro na cave do meu amigo e vizinho do lado, Miguel Coelho. Conversa puxa conversa e ficou estabelecido: vamos fazer Inter-rail! Naquela altura, tinha eu 20 anos, o famoso passe era diferente do de hoje – tinha limite de idade e não estava dividido em zonas, era-se livre de viajar por todos os países que englobavam o acordo. Mas eu estava relativamente limitado: como a minha mãe era funcionária da CP, eu pagava menos que os outros mas, em contrapartida, tinha de definir as fronteiras por onde entrava e saía.
No dia aprazado, 15 de Agosto de 1984, embarcámos de Santa Apolónia e mal conseguíamos esconder a excitação quando o Lusitânia Expresso iniciou lentamente a sua marcha, já a noite caíra. Parámos no Entroncamento e, depois, apenas na fronteira. A escuridão que vinha da janela não dava para descortinar nada e o sono, entretanto, começou a chegar. Dado o desconforto das cadeiras, resolvi estender-me ao comprido no corredor – estiquei o fino colchão azul de espuma, arrumei a mochila amarelo-mostarda com a bandeira portuguesa cosida e deitei-me sobre esta improvisada almofada. O truc-truc-truc da linha férrea embalou-me, e adormeci a pensar que, no dia seguinte, já estaria em Madrid.
Não vou descrever exaustivamente a viagem, lembro apenas as belas memórias que me ficaram, ainda que o trajecto tenha sido cumprido quase sem paragens até ao destino final: as horas de espera em Madrid; a corrida para apanhar o comboio em Barcelona; a avidez com que sorvi a paisagem da Côte d’Azur; a conversa noite fora com duas jovens italianas entre Nice a Veneza; as horas perdidas na fronteira da antiga Jugoslávia, onde os guardas revistavam minuciosamente as malas dos locais; a penosa travessia da nação forjada por Tito e a arreliadora dor de dentes que me acompanhou de Belgrado até Skopje; a entrada na Grécia em acalorada conversa com um francês que me tentava convencer da superioridade dos Galoises em relação ao SG Ventil; a chegada a Atenas e a subida à Acrópole sob um sol abrasador; a pouco entusiasmante volta ao Peloponeso, com passagem por Corinto, Kalamata e Patras; o festim de cores no porto do Pireu; o embarque para uma ilha tirada à sorte e onde seria passado a maior parte do tempo. Olhos fechados sobre o mapa do mar Egeu, umas voltas com o indicador ao calhas e destino traçado: Ios, uma ilha a meio caminho entre a costa e a ilha de Santorini. Aqui, foi uma semana de sol, praias infestadas de pedras, rochas, alemães e ingleses; noites animadas entre esplanadas e bares, com cerveja e ouzo a rodos e raparigas com muito menos roupa do que nacionalidades, o parque de campismo onde dormimos numa espécie de estacionamento de sacos-cama tendo como vizinhas umas suecas e um israelita, o regresso pelo mesmo caminho, mas com uma paragem de oito horas em Veneza – que deu para uma alegre vista de olhos enquanto trincava um pêssego delicioso e para a pior pizza da minha vida numa esplanada à beira-canal, o desfiar de paisagens e, por fim, o encontro em Barcelona com um sexagenário norte-americano que se auto-intitulava de Zorba. Só tínhamos comboio no dia seguinte e estávamos de bolsos praticamente vazios, pelo que a caridosa personagem de sandálias, calções de ganga e camisa pejada de palmeiras decidiu dar uma de benemérito e pagou-nos um jantar numa tasca horrenda, o quarto da pensão e, ainda, o bilhete no Talgo, o rápido comboio espanhol para o qual os portadores de inter-rail não tinham acesso.
Foi assim que entrámos em Portugal – parando no Entroncamento para gastar os últimos 25 escudos num maço de SG Ventil e no jornal “A Bola” – e a paragem definitiva em Santa Apolónia. E um misto de sensações: por um lado, a tristeza pelo fim da aventura, por outro, a alegria do regresso ao meu país, à minha cama, aos meus amigos, às novidades futebolísticas com o meu pai e irmão e à comida da minha mãe. No arquivo da memória, para sempre, meia-dúzia de fotos carcomidas, bilhetes de transportes, rótulos de garrafas e a nostalgia das noites mal dormidas nas estações de comboio europeias, falando e convivendo com pessoas de todas as nacionalidades. Foi a minha “internacionalização” – e a vontade de conhecer mais mundo.