Antes do mais, há que fazer um apanhado geral do futebol escocês, que tem diversas particularidades. Há dois clubes que dominam a centenária liga – com uma ou outra intromissão do Aberdeen FC de Sir Alex Ferguson – e que contemplam uma rivalidade acérrima também ela centenária. As razões dessa rivalidade prendem-se com questões de ordem religiosa, social e geográfica: os adeptos do Celtic são apelidados de “católicos”, ao passo que os do Rangers têm o epíteto de “protestantes”, obviamente com a conotação de credo entre as duas fações. Depois, há que ir à fundação: as origens do Celtic remontam a 1887, surgindo por vontade da humilde população irlandesa que tinha emigrado para a Escócia e que queria ter a sua expressão futebolística por oposição ao Rangers, fundado antes – e não surpreende, por isso, que as bancadas estejam frequentemente engalanadas com bandeiras da República da Irlanda, assim como faz sentido que o emblema seja um trevo.
Já o Rangers foi fundado por jovens da classe média-alta da cidade de filiação protestante e com ramificações anglicanas – daí que, por oposição ao Celtic, abundem as bandeiras do Reino Unido durante os jogos. Para se ter uma noção, basta dizer que está nos estatutos do clube não contratarem jogadores que, por baptizado, sejam católicos. A juntar a este caldeirão de diversidades, resta referir que os adeptos do Celtic residem na margem Leste do rio Clyde, ao passo que os do Rangers vivem na margem oposta. Aliás, asseguraram-me que não é nada conveniente adeptos e jogadores do Celtic irem para a área contrária, e vice-versa. As poucas excepções são relativas aos jogadores não-escoceses. Esses, aí, podem movimentar-se à-vontade.
Os jogos entre eles, apelidados de Old Firm, movimentam toda a cidade, seja no Celtic Park ou no Ibrox, onde as paixões e o fanatismo sobem aos píncaros. O que é espantoso, no meio de tudo isto, é que, sejam católicos ou protestantes, todos se unem quando o que está em causa é a selecção escocesa.
A maior cidade escocesa apresentou-se, logo à chegada, coberta de chuva, como era previsível. Apanhámos um daqueles típicos táxis das ilhas britânicas e fomos para um hotel decrépito na down town, onde eu e o Nuno Galvão Correia tratámos de ir jantar a um restaurante tailandês onde sabíamos que Cadete iria lá estar, conforme combinado anteriormente. Mas não fomos só nós que estavam no repasto: havia ainda um jornalista português que também tinha acabado de fazer uma reportagem com o jogador, mas que estava de abalada, e mais três personagens.
- Meus caros, estes são os meus amigos, o Graham, o Victor e a Emilly.
Pois bem, o primeiro era o mais velho e um pouco reservado, o segundo era um fulano um pouco estranho, baixote, com um bigodinho ridículo e que passou quase todo o tempo a rir por tudo e por nada, e a rapariga era uma jovem bem-apessoada com ar irreverente.
No dia seguinte, já tínhamos o plano traçado: como o jogo seria apenas à noite, passámos o dia na companhia de Graham para fazermos um périplo pela cidade. Para variar, tudo o que vimos foi sob chuva, o que tornou a urbe ainda mais escura e cinzenta, refletido no aspecto austero das fachadas dos prédios que não eram lambidas pelo Sol há muitas horas. Sinceramente, Glasgow não nos estava propriamente a deslumbrar.
Estávamos abrigados no carro a trocar algumas impressões com o nosso “guia” de ocasião quando fomos abordados por um polícia. Ah, e tal, o que estão aqui a fazer, isto é um pouco suspeito, blá-blá, blá-blá.
O Graham empertigou-se, afastou a calma que era seu apanágio, e respondeu que nós éramos jornalistas portugueses e que ele estava a fazer uma visita guiada pelos locais mais emblemáticos da cidade. Pelo ar indignado que empregou, o polícia deixou-nos em paz. Mas o Graham ainda fez questão de desabafar:
- Stupid policeman, it seems he’s english…
Lançámos achas para a fogueira:
- You don’t like the english people, righ?
- Do you think so? In fact, we hate those bloody fucking bastards!
Acho que percebemos a ideia.
O ponto alto do dia (ou da noite) foi no dia seguinte, pois íamos assistir ao jogo com Heart of Midlothian FC, ou simplesmente “Hearts”. O estádio estava repleto e havia alguma tensão, porque o clube de Edimburgo perfilha alguns dos ideais do Rangers, por oposição ao Hibernian FC, também da capital e de origens irlandesas, que grangeia simpatia para com o Celtic.
O Nuno Correia, antes do jogo, pediu algo a Cadete:
- Olha, eu estou atrás da baliza para onde atacas e depois mudo ao intervalo. Se marcares um golo, vem celebrar para o pé de mim, para eu te tirar uma “g’anda” foto, ok? Não te esqueças!
Vi o Nuno posicionar-se numa das balizas e eu fui para a bancada de imprensa, onde se fazia sentir um frio de rachar. Ao intervalo, o Celtic já ganhava por 2-0 e eu aproveitei esses 15 minutos de pausa para ir à sala de imprensa, pelo menos ali não fazia tanto frio. A agradável surpresa foi quando chegou um empregado com tigelas de caldo-verde quentinho que distribuiu por todos os jornalistas locais e que, a mim, soube-me pela vida!
O jogo, assinalado pela estreia de Paolo di Canio, saldou-se por um 3-0 final. Ah, e o Correia não chegou a tirar a tão almejada foto…
Ao longo da semana, aconteceram alguns episódios engraçados, muitas vezes também com as presenças dos seus dois amigos Graham e o Victor. Em relação a este último, Cadete fez questão em lhe ensinar algumas expressões em português vernáculo que aqui me escuso a proferir. O sujeito patusco memorizou algumas delas e passou todo o tempo a repeti-las, estivesse onde estivesse. Sempre que acabava uma destas frases começava a rir-se alarvemente, visivelmente orgulhoso por falar português. As gargalhadas eram tão contagiantes que eu, o Nuno e o Cadete não conseguíamos parar de rir.
Houve um dia que Cadete perguntou se o queríamos acompanhar numa sessão fotográfica publicitária, se não me engano a uma marca de feijões enlatados. Fomos no carro dele até ao estúdio, ele equipou-se à Celtic e, vindo de outro lado, surgiu um fulano com a camisola do Rangers. Vim a saber, depois, que era alemão e que jogava pelo clube rival. Sendo Cadete português e o outro alemão, não havia motivos para rivalidades que lhes passavam completamente ao lado. O que não vale uma lata de feijões.
Uma vez saídos do estúdio, voltámos com Cadete a conduzir e, numa das artérias mais movimentadas de Glasgow, parámos num sinal vermelho. Os outros condutores, quando viram quem estava ao volante, saíram dos carros para o cumprimentar e pedir autógrafos. Tal como eles, também os peões que atravessavam a rua abeiraram-se da janela a solicitar autógrafos, fotografias e mais autógrafos. Cadete distribuiu-se em simpatias e eu deixei de contar o número de vezes que o semáforo mudou de luzes. Estivemos ali parados bastante tempo e isso serviu para a atestar a popularidade do jogador. Em Glasgow, Cadete era um ídolo, quase um deus.
A ideia foi do Nuno:
- Jorge, e estava aqui a pensar uma coisa... Que tal irmos a uma loja de kilts para eu te fotografar?
- Como assim? Queres ver-me de saias, é isso?
- Não, pá, é uma coisa séria, ia dar umas fotos engraçadas.
Cadete alinhou na ideia, e fomos a uma loja que exibia na montra uma quantidade assinalável de kilts. Quando entrámos, a empregada reconheceu-o e disse-lhe que, no fim, queria um autógrafo. Ele foi para a cabina de trocas e, quando voltou, eu e o Correia fizemos um esforço para conter o riso. Apareceu com uma camisa branca, suspensórios, meias brancas e um kilt axadrezado azul e preto. A empregada deu umas dobras na vestimenta para ele parece um highlander a sério e o Nuno fotografou-o de alto a baixo em vários ângulos e poses. E seguiu-se o diálogo entre eles:
- Jorge, isto não está a resultar…
- Não? Estou mal?
- Não é isso, é o kilt.
- O que tem o kilt?
- É azul, devia ser verde!
- Pois, faz sentido!
Eu e o Nuno também achámos.
Voltou para dentro, surgiu desta feita com um kilt verde e preto e a empregada aprovou. Eu e o Nuno também.
 saída, não me contive:
- Jorge, posso tratar-te por Jorge McCadete?
Na última noite, para nos despedirmos da cidade, fomos sair à noite com Cadete, com o Graham, com o Victor e a Emilly até um bar com vídeo-clips a passar no ecrã gigante onde, a determinada altura, surgiu Jon Bon Jovi a cantar “Livin’On a Prayer”. A Emilly aproximou-se de mim e sussurrou-me:
- He´so gorgeus, it looks like Jorge, dont you think so?
Não respondi e limitei-me a sorrir.
Já a pé, a caminho do hotel, não deixei de ficar surpreendido quando nos cruzámos com miúdas com vestidos leves, decotados, minissaias, sandálias abertas e que, apesar da chuva inclemente, chapinhavam nas poças de água das ruas e só passavam de roxo para o tom natural dentro de espaços fechados e aquecidos. Para nos abrigarmos daquela irritante chuva miudinha, eu e o Nuno Correia fomos a um ou dois pubs, ouvindo com regularidade a cantiga dedicada pelos adeptos a Cadete, berrada a plenos pulmões pelos fans mais empedernidos e com as faces rosadas da embriaguez:
“There´s only one Jorge Cadete,
He puts the ball in the nety
He´s portuguese, he scores with ease
Walking in Jorge’s wondeland”
Passados algo como três anos, voltei a reencontrar Jorge Cadete, agora numa outra cidade e em outro clube. Com efeito, após duas temporadas de sucessos em Glasgow, onde era adorado, e acabou por apostar no Real Club Celta e na cidade de Vigo, trocando um clube reconhecido por um outro de qualidade mediana e que só muito dificilmente lutaria por títulos. Como ele esteve sozinho em Glasgow, talvez a proximidade com Portugal o tenha seduzido, sinceramente não sei. Foi para aquilatar todas estas opções que voltou a ser equacionada uma nova entrevista, novamente com Nuno Correia como parceiro.
Quando chegámos, estacionámos o carro perto de um restaurante para almoçar, e estávamos entretidos com uns calamares quando alguém entrou no estabelecimento e se sentou ao nosso lado.
- Então, tudo bem?
Parece ser sina minha encontrar José Mourinho nos sítios mais improváveis.
O tempo passado com o futebolista foi curto, muito menos comparativamente quando estivemos na Escócia, não mais que dois ou três dias. Por esse factor, limitámo-nos a ir ao estádio Balaídos sem qualquer partida de futebol na agenda, a dar uma espiada na ría de Vigo e, obviamente, a entrevistar o jogador, que, na cidade galega, não teve o mesmo êxito como tivera no Celtic.
Houve algo, talvez, que o fizesse recordar os bons tempos escoceses – e não tem nada a ver com as condições meteorológicas onde imperava uma tremenda rivalidade entre o Rangers e o Celtic. Não é que seja igual nem nada que se pareça. É que, na Galiza, também há grande rivalidade entre os dois clubes mais representativos da província, o Celta e o Deportivo La Coruña, e os adeptos não se podem ver uns aos outros. Num café perto do estádio, contaram-nos que, se um automóvel com a matrícula de Vigo fosse à Corunha, saía de lá com mossas na chapa e com os vidros paridos, e o mesmo se aplicava em situação contráriaVoltámos para Portugal sem grandes certezas em relação à carreira de Cadete, mas regressámos com uma das melhores recordações – uma camisola do Celta comprada na loja do clube.
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