Ao fim de algo como quatro meses, fiquei extremamente aliciado por um
convite para integrar a redacção de um novo projecto. A ideia era inovadora e
ambiciosa, agradava-me a restante equipa e o tipo de contrato –
passaria a integrar os quadros da empresa – eram altamente estimulantes. Não
hesitei e abracei o repto com entusiasmo, até porque, sem o saber na altura,
a "Gazeta dos Desportos" encerraria definitivamente escasso tempo depois.
Tudo começou no Café In, à
beira-Tejo, depois de fecharmos a edição da Gazeta. O director, Vítor Galvão
Correia, perguntou-me, juntamente com o Gonçalo Pereira, que me acompanhava
desde os tempos do jornal “Sporting”, se queríamos ir comer alguma coisa e até
porque tinha algo para nos falar. Já passava da meia-noite e, umas sandes depois,
disse-nos numa voz arrastada: “Tive reuniões com o administrador de uma editora
que quer lançar uma revista desportiva do género destas”, mostrando, então, alguns
exemplares da alemã “Sports Live”. Muito bom. “Mas”, continuou, “a ideia é
fazer isto à semelhança da Volta ao Mundo, não sei se conhecem”.
Claro que conhecia: era a primeira revista de viagens lançada em Portugal e
já lera algumas que o meu pai comprara. “Pois bem”, continuou, “a editora é a
mesma da “Volta ao Mundo” e, depois de algumas conversas com o administrador
Paulo Ferreira, vou ficar com o cargo de director e fiquei de escolher uma
equipa. Portanto, queria saber se vocês estão interessados…”
Só faltou andar aos saltos de contentamento pela esplanada fora. Óbvio que
sim, claro que sim! Selámos o acordo com um aperto de mão e eu e o Gonçalo
levantámos as mãos para um “give me five”.
Semanas depois, tivemos as primeiras reuniões, começámos a delinear ideias e
fiquei a conhecer os meus colegas da primeira equipa da “Mundial”: os já
conhecidos Vítor Correia, o fotógrafo Nuno Correia e o Gonçalo Pereira, e os
elementos que não conhecia – o mentor do projecto gráfico Henrique Cayatte, os designers Paulo Barata Côrrea e José
Guilherme, a ilustradora Luísa Barreto e a secretária de redacção Maria José.
Para o primeiro número ficou decidido, sem grandes
dificuldades, dar a capa a Luís Figo, a maior estrela lusa do momento, e que se
tinha transferido para o F.C. Barcelona. Tudo ficou tratado – contacto com o
jogador, voo, aluguer de automóvel e hotel. Mas a minha viagem não foi
directamente para a cidade condal: aproveitando o facto de o Barcelona ir jogar
em Madrid contra o Atletico local, apanharia o avião para a capital espanhola,
iria assistir ao jogo, dormiria num hotel e, na manhã seguinte, deslocar-me-ia
de automóvel até à capital catalã, onde iria ficar duas semanas. Ia sozinho,
pois o Nuno Correia só se juntaria dias mais tarde.
Tudo correu como o previsto… “mais ou menos”. O
voo foi tranquilo, aluguei o automóvel no aeroporto e, como era cedo, decidi ir
primeiro ao hotel deixar as malas. E surgiu o primeiro contratempo: tinha o nome e
o endereço, mas não fazia a mais pequena ideia onde era – e, na altura, não
havia GPS...
No aeroporto deram-me um mapa da cidade e a
localização do hotel, mas andei às voltas sem saber onde me encontrava,
encontrando ruas de sentido único e vielas sem saída. De dez em dez minutos
pedia informações, algumas contraditórias, até que, por fim, lá dei com aquilo.
Era num bairro esconso e, quando entrei, tudo me parecia de séculos passados. Fiz
o respectivo check-in e não deixei de
reparar em algumas velhas e roliças matronas sentadas no sofá do átrio, com amplos
decotes e mirando-me de alto a baixo. Quando fui para os elevadores, tentei
fingir que não tinha ouvido os seus comentários, dos quais o mais agradável foi
“mira, que guapo!”, seguido de
sonoras gargalhadas.
O quarto era uma águas-furtada, com uma minúscula
janela que dava para as traseiras do prédio e um espaço suficiente para apenas
albergar uma cama e uma mesinha de cabeceira. Faltavam horas para o jogo e
tentei descansar, mas não consegui – os sons de cariz sexual impediam-no. Dado
que não conseguia passar pelas brasas, resolvi ir mais cedo para o estádio
pois, pelo menos, sempre me entretinha em vez de estar ali no quarto. Como suspeitei
que iria ser novamente o cabo dos trabalhos dar com o hotel no regresso, decidi
ir de metro. Passei diversas estações, mudei três vezes de linha e, por fim,
dei com o Vicente Calderón diante de mim. Já era noite e já havia algum
movimento em redor do estádio, mas decidi dar uma volta ao recinto, ficando
surpreendido por uma das bancadas estar por cima do rio Manzanares. Até que
entrei e, mais uma vez, dei por mim surpreendido: o estádio, por dentro, era
muito maior do que deixava antever de fora e, minuto após minutos, as bancadas
iam ficando repletas. Quando as equipas entraram em campo, 60 mil pessoas
enchiam-nas. O jogo não teve grande história, dada a flagrante superioridade do
Atleti, saldando-se o resultado por um 3-1 final.
Finda a partida, regressei ao hotel e voltei a ver
as velhas matronas no sofá – se não eram as mesmas, eram iguais, mas desta vez
com propostas mais concretas que aqui me recuso a referir. Subi e deitei-me,
alimentado pela vontade de partir na manhã seguinte para Barcelona.
Acordei entusiasmado. Foi
só tempo de arrumar a mala, sorver o pequeno-almoço e fazer-me à estrada Ao
longo de qualquer coisa como 600 quilómetros fui vendo o desfilar da paisagem,
atravessando a aridez de Aragão, cruzando o Ebro, parando aqui e ali para
retemperar as energias com um café solo
até entrar, depois de Saragoça, na auto-estrada da Catalunha. Já era noite, mas
o fim da etapa estava à vista.
Passada a portagem,
surgiu-me uma dúvida: havia uma bifurcação e não sabia qual delas tomar… Não
sei porquê, talvez pela sugestão do nome, arrisquei na saída para a avenida
Diagonal, uma decisão ao calhas mas correcta, uma vez que percebi que a artéria
atravessava quase toda a cidade. Estes primeiros momentos em Barcelona foram
deslumbrantes: O Natal era dali a três semanas e tudo estava iluminado.
Reparei particularmente na fachada do El Corte Inglès, totalmente iluminada com
um dos cenários da “Guerra das Estrelas” – La
Guerra de las Galaxias, em castelhano. Tinha a morada do hotel, mas senti
alguma dificuldade inicial em atentar que as calles eram rúas, e
distinguir os carrer das avingudas e as ramblas das plaças.
Segundo o mapa, o hotel ficava no bairro de L’Eixample, não muito longe das ramblas, mas não havia meio de atinar
com o caminho. Andava às voltas, sabia que estava perto, mas as ruas de sentido
obrigatório impediam-me de lá chegar. A determinada altura senti-me meio
perdido mas, depois de perguntar aqui e ali, lá acabei por chegar. A primeira
impressão do hotel foi boa, mas também, depois daquela experiência em Madrid,
qualquer coisa me servia...
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As luzes da Avenida Diagonal nas vésperas do Natal |
Saí do hotel para comer
qualquer coisa e passear pelos arredores. Percebi, então, que a localização era
privilegiada – perto das ramblas, da Plaça de Catalunya e do Passeig de Gràcia,
onde me deslumbrei com as fachadas da Casa Millá, ou La Pedrera, e Batlló, obras
do arquitecto Antoni Gaudí. Perto de uma delas, não resisti a entrar numa taperia que seria, a partir de então, o
meu lugar eleito para comer. Não havia refeições propriamente ditas, era tudo à
base de tapas, raciones e bocadillos,
enfim, inúmeros petiscos para “picar”. O “Tapa-Tapa” passou a ser um ponto de
paragem obrigatório.

Voltei para o hotel,
porque no dia seguinte teria de começar o trabalho bem cedo, pois tinha de me
inteirar sobre toda a realidade do F.C. Barcelona. Para já, o Nuno Correia
ainda não tinha chegado e, depois, Figo não estava presente porque tinha ido a
Portugal tratar de uns assuntos. Na manhã seguinte rumei para o estádio, que
era a meio da longuíssima avenida Diagonal, mas demorei bem mais tempo do que
estava à espera – o trânsito era infernal. Quando cheguei, olhei para o
exterior e dei por mim a pensar que estava a olhar para um dos mais míticos
estádios do Mundo. E mais em sentido fiquei – ao ponto de sentir um arrepio na
espinha – quando me sentei na bancada: mesmo vazio, o Camp Nou era imponente.
Tentei imaginar como seria com 100 mil adeptos…
Observei o treino e, no
fim, aguardei na sala de imprensa. Nesse entretém, falei com os diversos
jornalistas presentes, estabeleci contactos – todos foram prestáveis e
prontificaram-se a ajudar no que fosse preciso – recolhi depoimentos sobre o
que achavam do jogador português e, por último, assisti à conferência de
imprensa, quase toda ela em catalão. Deu para perceber algumas coisas, mas…
Até que me surgiu um rosto
bastante conhecido: José Maria Bakero, um dos grandes jogadores que tinham
passado pelo clube e que agora exercia funções de dirigente. Não perdi a
ocasião de o puxar para o lado e o entrevistar. Estava satisfeito até então,
para primeiro dia não tinha sido mau, mas decidi ficar o resto do dia pelas
imediações do estádio – e fiquei extremamente impressionado pelas
infraestruturas do clube. Ao lado, havia o mini-estadi, uma réplica de Camp
Nou em pequeno, que também servia para treinos e para os jogos da equipa B, um
pouco mais à frente o Palau Blau Grana, o pavilhão para as restantes
modalidades desportivas e, com tudo ligado por pontes pedonais, ainda havia o
edifício-sede. Um verdadeiro mundo, que atestava a grandeza do clube, e que
pude comprovar com a visita ao museu do Barça, um dos mais visitados da cidade.
E comecei imediatamente a engendrar que, além da reportagem com Luís Figo,
também se podia fazer um trabalho paralelo em relação ao F.C. Barcelona.
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Camp Nou, Mini-Stadi e Palau Blau-Grana |
À noite alarguei a minha
área de passeio. Desci (e subi várias vezes) as ramblas, fui ver o mar passando
pelo Passeio de Colombo e abanquei numa esplanada, apesar do frio, a beber um
café e a observar o que me rodeava. Barcelona, definitivamente, tinha-me caído
no goto.
Na manhã seguinte fui
buscar o Nuno ao aeroporto, almoçámos e fomos para mais um treino que, nesse
dia, era à tarde. O aprontamento era num relvado secundário, o que permitia
mais proximidade aos jogadores. E vimos ali, a poucos metros de distância,
todos os craques que, nessa altura, em 1995, compunham o plantel da equipa,
além do treinador Johan Cruyff. Um deles, Figo, acenou-nos quando nos viu e, por
gestos, combinámos falar no final do treino.
O encontro foi feito de
sorrisos e cumprimentos, pois já nos conhecíamos dos tempos do Sporting e, logo
ali, ficou acertado o jantar. Entrámos no seu Mercedes – curiosamente com
matrícula de Madrid – e entrámos num dos seus restaurantes preferidos, onde era
cliente habitual, sendo cumprimentado efusivamente por todos os empregados. Um
deles fez-lhe um pedido: “Já tenho as camisolas dos clubes onde jogaste, mas
não tenho a da selecção de Portugal…”. Figo alertou-o: “No es muy guapa…”. O empregado disse que não se importava e encaminhou-nos
para a mesa num sítio mais reservado. O jantar foi bastante agradável, regado a
champanhe, trocámos memórias e saciámos novidades e, sobretudo, explicámos o
que pretendíamos fazer nos dias seguintes.
Na manhã seguinte, eu e o
Nuno fomos dar um passeio por Barcelona. Fomos à Sagrada Família, que me
impressionou imenso pela envergadura, pela altura e pela decoração, repleta de
guindastes para concluir a obra que a morte prematura de Gaudí não permitiu – sentindo-me
completamente frustrado por não a conseguir fotografar por inteiro. E ainda
fomos a Barceloneta, almoçámos no Porto Olímpico, subimos a Montjuic e
visitámos o estádio olímpico, onde na altura jogava o outro clube da cidade, o
Espanyol.

As duas semanas deram para acompanhar o jogador
português, para passear por Barcelona, para assistir aos treinos e para
assistir a mais um jogo, frente ao Sporting Gijón. E foi nessa noite que vi o
Camp Nou quase repleto, foi nessa noite que ouvi pela primeira vez o hino do
Barça e foi ainda nessa noite que escutei as músicas entoadas pelos hinchas dedicadas a Figo. O português
tinha Barcelona a seus pés e eu, quando parti, senti que a cidade também me
tinha ficado no coração. Admito que, então, fiquei com um fraquinho pelo FC
Barcelona, rapidamente desfeito quando, anos depois, Cristiano Ronaldo se mudou de armas e bagagens para o Real ;Madrid. Hoje, não gosto do F.C. Barcelona, mas continuo a gostar, e muito, de Barcelona.