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28 abril 2015

Lamentações em Jerusalém

Antes de ingressar na “Mundial”, efectuei a última reportagem ao serviço da “Gazeta dos Desportos”, acompanhando, uma vez mais, a equipa do Sporting numa deslocação ao estrangeiro. Estávamos em 1995.
O destino do sorteio da Taça das Taças colocara o Maccabi Haifa no caminho, e fiquei extremamente satisfeito por ter sido destacado para me deslocar a um país distante e, de certa forma, misterioso. Foi uma longa deslocação num charter que estava totalmente ocupado pelos jogadores, equipa técnica, adeptos e jornalistas. Nós, da imprensa, ficámos nos lugares traseiros – onde, naquela altura, se podia fumar – e assisti, com alguma incredulidade, ao constante vaivém dos jogadores até perto de nós, para matar o tempo em conversas… ou para “cravar” um cigarro. 
            Horas depois, aterrámos finalmente no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, onde passámos horas mortas à espera de sermos revistados e submetidos a um inquérito, até partirmos de autocarro para Haifa, no norte e não muito distante da fronteira com o Líbano.
A revista foi minuciosa, como já disse, mas também teve contornos um tanto ou quanto estranhos…
- Posso ver a sua mala?
Respondi que sim, à vontade.
- O que está neste saco?
- São meias…
- E neste?
- Hammm… são boxers
Então, o zeloso funcionário perguntou-me:
- Tem consigo algum tipo de arma?
Estive tentado a perguntar-lhe se o canivete suíço ou o corta-unhas contavam, mas achei melhor não.

Vista de Haifa a partir do hotel - o Mediterrâneo acaba aqui
Chegámos a Haifa à noitinha, foi só tempo de comermos qualquer coisa numa esplanada perto do hotel, assistir ao treino de adaptação ao relvado e à luz artificial e, mais tarde, ir até um bar beber qualquer coisa. Foi aqui que deu para constatar que a população de Haifa estava completamente ocidentalizada, pela fluência na língua inglesa e pelo modo de vestir. As empregadas de balcão, então, não se inibiam de ostentar generosos decotes, deixando a descoberto largos centímetros de pele morena…
No dia seguinte acordei com o sol a entrar de jorro pela enorme janela do meu aposento. A vista era magnífica – em frente, o término do Mediterrâneo praticamente sem ondas; ao lado, o sagrado monte Carmelo. Depois de tomado o pequeno-almoço, eu e um grupo de colegas começámos a falar sobre o que fazer ao longo do dia, e rapidamente se chegou à conclusão que estar em Israel e não ir a Jerusalém era uma oportunidade irrecusável. Fizemos as diligências necessárias e fretámos um táxi com sete lugares e, apesar da distância, havia tempo – o jogo era só à noite.
            A viagem foi longa, pelo muito trânsito e pelo estado degradado de algumas estradas mas, ao fim de umas quantas horas, lá chegámos. Não havia propriamente planos, pelo que nos limitámos a seguir os grupos de turistas que, certamente, iriam visitar os lugares mais emblemáticos. Foi assim que em breve vislumbrámos o Muro das Lamentações, o único troço da muralha que restava do antigo templo do rei Salomão. O acesso tinha de obedecer a alguns protocolos: era obrigatório o uso da kippah, aquele chapeuzinho para cobrir a cabeça – eram feitos de papel e distribuídos gratuitamente – e havia uma distinção sexista: homens para o lado esquerdo, mulheres para o lado direito. Aproximei-me da parede de pedra e depressa percebi o porquê da sua designação: ao meu lado, um sacerdote de hábito negro, com longos cabelos e barba comprida, rezava algo ininteligível e, de seguida, batia com a testa na parede. Olhei à volta e muitos mais faziam o mesmo. Certo, por isso deve ser mesmo o muro das lamentações.
Fiquei um pouco impressionado e dirigi-me para um espaço escuro que ladeava uma das alas do muro – era uma sala repleta de sacerdotes sentados em bancos de madeira e que liam a Tora em murmúrios, mas sempre num curioso movimento: balançavam para a frente e para trás enquanto liam e, após alguns minutos, levantavam-se e sempre movimentando a cabeça, diziam orações. Todos faziam o mesmo – quase parecia a “Onda” do Mundial do México. Mais uma vez fiquei impressionado, pelo clima místico do lugar e pela solenidade do momento. À saída, voltámos a juntar-nos e começámos a percorrer as velhas vielas, até depararmos com outro grupo de turistas que se amontoavam a espreitar qualquer coisa. Com curiosidade, aproximámo-nos. Era um buraco, uma espécie de gruta e, assim que apanhei uma nesga, espreitei também – mas era demasiado escuro e não consegui ver nada. Só depois, em conversa com um turista alemão, percebi que era o Santo Sepulcro, o lugar onde, supostamente, Cristo foi enterrado. Wunderbar!, exclamou o meu interlocutor. Acredito, mas também gostava de ter visto alguma coisa.
Ruelas do bairro palestiniano de Jerusalém
            Avistámos a doirada Cúpula da Rocha, passámos ao lado do Monte das Oliveiras, mas como a sede e o cansaço tomaram conta de nós, resolvemos abancar numa esplanada no bairro palestiniano. Em cada esquina havia um soldado de metralhadora em punho e, apesar do clima um tanto ou quanto intimidante, isso tranquilizou-nos. Bebemos, comemos, falámos, assistimos ao corrupio de gentes, fomos aliciados constantemente por vendedores de bugigangas e convites para entrar em casas que vendiam tapetes.
            Era hora de regressar, mas meti na cabeça que não queria sair de Jerusalém sem uma recordação. Nem de propósito: a determinada altura, passa por mim um vendedor ambulante e eu fiquei de olho nas cafias e no egal, aqueles panos axadrezados que são utilizados na cabeça e a respectiva tira. Deu-me um preço, mas eu sabia de antemão que teria de regatear, e andámos ali à volta de algumas contas até que decidi fechar o negócio. Saí dali todo contente com o souvenir, considerando-o uma verdadeira pechincha – ideia que mais tarde foi desfeita quando, inconsolável, vi uma igual à venda numa loja do aeroporto de Telavive por mais de metade do preço…
           

A viagem de regresso a Haifa foi penosa. Mais trânsito, mais calor, mas pessoalmente muito mais rápida do que supunha: estendi-me ao comprido no banco de trás que estava vago e adormeci profundamente, só acordando às portas da cidade. Já refeito do torpor, foi só tempo de ir ao hotel e rumar para o estádio, que nessa altura já estava repleto de adeptos. O jogo foi sofrível e pouco emocionante, saldando-se por um 0-0 (que seria corrigido em Alvalade com um 4-0 final) e, antes de este ter terminado, alinhavei as últimas linhas da crónica e enviei-a para a redacção em Lisboa. Seguimos depois para Telavive e entrámos a bordo do charter e, durante a longa viagem, fui recuperando as imagens de Jerusalém, percebendo que não é por acaso que é a cidade sagrada para três religiões. A propósito de três, diga-se que a cafia e o egal do free-shop eram três vezes mais baratos do que o que comprara em Jerusalém. Ficou-me de emenda… ou não?

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