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20 abril 2015

Com Figo em Barcelona

          Ao fim de algo como quatro meses, fiquei extremamente aliciado por um convite para integrar a redacção de um novo projecto. A ideia era inovadora e ambiciosa, agradava-me a restante equipa e o tipo de contrato – passaria a integrar os quadros da empresa – eram altamente estimulantes. Não hesitei e abracei o repto com entusiasmo, até porque, sem o saber na altura, a "Gazeta dos Desportos" encerraria definitivamente escasso tempo depois.
            Tudo começou no Café In, à beira-Tejo, depois de fecharmos a edição da Gazeta. O director, Vítor Galvão Correia, perguntou-me, juntamente com o Gonçalo Pereira, que me acompanhava desde os tempos do jornal “Sporting”, se queríamos ir comer alguma coisa e até porque tinha algo para nos falar. Já passava da meia-noite e, umas sandes depois, disse-nos numa voz arrastada: “Tive reuniões com o administrador de uma editora que quer lançar uma revista desportiva do género destas”, mostrando, então, alguns exemplares da alemã “Sports Live”. Muito bom. “Mas”, continuou, “a ideia é fazer isto à semelhança da Volta ao Mundo, não sei se conhecem”.
           Claro que conhecia: era a primeira revista de viagens lançada em Portugal e já lera algumas que o meu pai comprara. “Pois bem”, continuou, “a editora é a mesma da “Volta ao Mundo” e, depois de algumas conversas com o administrador Paulo Ferreira, vou ficar com o cargo de director e fiquei de escolher uma equipa. Portanto, queria saber se vocês estão interessados…”
Só faltou andar aos saltos de contentamento pela esplanada fora. Óbvio que sim, claro que sim! Selámos o acordo com um aperto de mão e eu e o Gonçalo levantámos as mãos para um “give me five”. Semanas depois, tivemos as primeiras reuniões, começámos a delinear ideias e fiquei a conhecer os meus colegas da primeira equipa da “Mundial”: os já conhecidos Vítor Correia, o fotógrafo Nuno Correia e o Gonçalo Pereira, e os elementos que não conhecia – o mentor do projecto gráfico Henrique Cayatte, os designers Paulo Barata Côrrea e José Guilherme, a ilustradora Luísa Barreto e a secretária de redacção Maria José.

Para o primeiro número ficou decidido, sem grandes dificuldades, dar a capa a Luís Figo, a maior estrela lusa do momento, e que se tinha transferido para o F.C. Barcelona. Tudo ficou tratado – contacto com o jogador, voo, aluguer de automóvel e hotel. Mas a minha viagem não foi directamente para a cidade condal: aproveitando o facto de o Barcelona ir jogar em Madrid contra o Atletico local, apanharia o avião para a capital espanhola, iria assistir ao jogo, dormiria num hotel e, na manhã seguinte, deslocar-me-ia de automóvel até à capital catalã, onde iria ficar duas semanas. Ia sozinho, pois o Nuno Correia só se juntaria dias mais tarde.
Tudo correu como o previsto… “mais ou menos”. O voo foi tranquilo, aluguei o automóvel no aeroporto e, como era cedo, decidi ir primeiro ao hotel deixar as malas. E surgiu o primeiro contratempo: tinha o nome e o endereço, mas não fazia a mais pequena ideia onde era – e, na altura, não havia GPS...
No aeroporto deram-me um mapa da cidade e a localização do hotel, mas andei às voltas sem saber onde me encontrava, encontrando ruas de sentido único e vielas sem saída. De dez em dez minutos pedia informações, algumas contraditórias, até que, por fim, lá dei com aquilo. Era num bairro esconso e, quando entrei, tudo me parecia de séculos passados. Fiz o respectivo check-in e não deixei de reparar em algumas velhas e roliças matronas sentadas no sofá do átrio, com amplos decotes e mirando-me de alto a baixo. Quando fui para os elevadores, tentei fingir que não tinha ouvido os seus comentários, dos quais o mais agradável foi “mira, que guapo!”, seguido de sonoras gargalhadas.
O quarto era uma águas-furtada, com uma minúscula janela que dava para as traseiras do prédio e um espaço suficiente para apenas albergar uma cama e uma mesinha de cabeceira. Faltavam horas para o jogo e tentei descansar, mas não consegui – os sons de cariz sexual impediam-no. Dado que não conseguia passar pelas brasas, resolvi ir mais cedo para o estádio pois, pelo menos, sempre me entretinha em vez de estar ali no quarto. Como suspeitei que iria ser novamente o cabo dos trabalhos dar com o hotel no regresso, decidi ir de metro. Passei diversas estações, mudei três vezes de linha e, por fim, dei com o Vicente Calderón diante de mim. Já era noite e já havia algum movimento em redor do estádio, mas decidi dar uma volta ao recinto, ficando surpreendido por uma das bancadas estar por cima do rio Manzanares. Até que entrei e, mais uma vez, dei por mim surpreendido: o estádio, por dentro, era muito maior do que deixava antever de fora e, minuto após minutos, as bancadas iam ficando repletas. Quando as equipas entraram em campo, 60 mil pessoas enchiam-nas. O jogo não teve grande história, dada a flagrante superioridade do Atleti, saldando-se o resultado por um 3-1 final.
Finda a partida, regressei ao hotel e voltei a ver as velhas matronas no sofá – se não eram as mesmas, eram iguais, mas desta vez com propostas mais concretas que aqui me recuso a referir. Subi e deitei-me, alimentado pela vontade de partir na manhã seguinte para Barcelona.
           
               Acordei entusiasmado. Foi só tempo de arrumar a mala, sorver o pequeno-almoço e fazer-me à estrada Ao longo de qualquer coisa como 600 quilómetros fui vendo o desfilar da paisagem, atravessando a aridez de Aragão, cruzando o Ebro, parando aqui e ali para retemperar as energias com um café solo até entrar, depois de Saragoça, na auto-estrada da Catalunha. Já era noite, mas o fim da etapa estava à vista.
            Passada a portagem, surgiu-me uma dúvida: havia uma bifurcação e não sabia qual delas tomar… Não sei porquê, talvez pela sugestão do nome, arrisquei na saída para a avenida Diagonal, uma decisão ao calhas mas correcta, uma vez que percebi que a artéria atravessava quase toda a cidade. Estes primeiros momentos em Barcelona foram deslumbrantes: O Natal era dali a três semanas e tudo estava iluminado. Reparei particularmente na fachada do El Corte Inglès, totalmente iluminada com um dos cenários da “Guerra das Estrelas” – La Guerra de las Galaxias, em castelhano. Tinha a morada do hotel, mas senti alguma dificuldade inicial em atentar que as calles eram rúas, e distinguir os carrer das avingudas e as ramblas das plaças. Segundo o mapa, o hotel ficava no bairro de L’Eixample, não muito longe das ramblas, mas não havia meio de atinar com o caminho. Andava às voltas, sabia que estava perto, mas as ruas de sentido obrigatório impediam-me de lá chegar. A determinada altura senti-me meio perdido mas, depois de perguntar aqui e ali, lá acabei por chegar. A primeira impressão do hotel foi boa, mas também, depois daquela experiência em Madrid, qualquer coisa me servia...

As luzes da Avenida Diagonal nas vésperas do Natal 

            Saí do hotel para comer qualquer coisa e passear pelos arredores. Percebi, então, que a localização era privilegiada – perto das ramblas, da Plaça de Catalunya e do Passeig de Gràcia, onde me deslumbrei com as fachadas da Casa Millá, ou La Pedrera, e Batlló, obras do arquitecto Antoni Gaudí. Perto de uma delas, não resisti a entrar numa taperia que seria, a partir de então, o meu lugar eleito para comer. Não havia refeições propriamente ditas, era tudo à base de tapas, raciones e bocadillos, enfim, inúmeros petiscos para “picar”. O “Tapa-Tapa” passou a ser um ponto de paragem obrigatório.


            Voltei para o hotel, porque no dia seguinte teria de começar o trabalho bem cedo, pois tinha de me inteirar sobre toda a realidade do F.C. Barcelona. Para já, o Nuno Correia ainda não tinha chegado e, depois, Figo não estava presente porque tinha ido a Portugal tratar de uns assuntos. Na manhã seguinte rumei para o estádio, que era a meio da longuíssima avenida Diagonal, mas demorei bem mais tempo do que estava à espera – o trânsito era infernal. Quando cheguei, olhei para o exterior e dei por mim a pensar que estava a olhar para um dos mais míticos estádios do Mundo. E mais em sentido fiquei – ao ponto de sentir um arrepio na espinha – quando me sentei na bancada: mesmo vazio, o Camp Nou era imponente. Tentei imaginar como seria com 100 mil adeptos…
            Observei o treino e, no fim, aguardei na sala de imprensa. Nesse entretém, falei com os diversos jornalistas presentes, estabeleci contactos – todos foram prestáveis e prontificaram-se a ajudar no que fosse preciso – recolhi depoimentos sobre o que achavam do jogador português e, por último, assisti à conferência de imprensa, quase toda ela em catalão. Deu para perceber algumas coisas, mas…


            Até que me surgiu um rosto bastante conhecido: José Maria Bakero, um dos grandes jogadores que tinham passado pelo clube e que agora exercia funções de dirigente. Não perdi a ocasião de o puxar para o lado e o entrevistar. Estava satisfeito até então, para primeiro dia não tinha sido mau, mas decidi ficar o resto do dia pelas imediações do estádio – e fiquei extremamente impressionado pelas infraestruturas do clube. Ao lado, havia o mini-estadi, uma réplica de Camp Nou em pequeno, que também servia para treinos e para os jogos da equipa B, um pouco mais à frente o Palau Blau Grana, o pavilhão para as restantes modalidades desportivas e, com tudo ligado por pontes pedonais, ainda havia o edifício-sede. Um verdadeiro mundo, que atestava a grandeza do clube, e que pude comprovar com a visita ao museu do Barça, um dos mais visitados da cidade. E comecei imediatamente a engendrar que, além da reportagem com Luís Figo, também se podia fazer um trabalho paralelo em relação ao F.C. Barcelona.

Camp Nou, Mini-Stadi e Palau Blau-Grana
         



À noite alarguei a minha área de passeio. Desci (e subi várias vezes) as ramblas, fui ver o mar passando pelo Passeio de Colombo e abanquei numa esplanada, apesar do frio, a beber um café e a observar o que me rodeava. Barcelona, definitivamente, tinha-me caído no goto.

            Na manhã seguinte fui buscar o Nuno ao aeroporto, almoçámos e fomos para mais um treino que, nesse dia, era à tarde. O aprontamento era num relvado secundário, o que permitia mais proximidade aos jogadores. E vimos ali, a poucos metros de distância, todos os craques que, nessa altura, em 1995, compunham o plantel da equipa, além do treinador Johan Cruyff. Um deles, Figo, acenou-nos quando nos viu e, por gestos, combinámos falar no final do treino.
            O encontro foi feito de sorrisos e cumprimentos, pois já nos conhecíamos dos tempos do Sporting e, logo ali, ficou acertado o jantar. Entrámos no seu Mercedes – curiosamente com matrícula de Madrid – e entrámos num dos seus restaurantes preferidos, onde era cliente habitual, sendo cumprimentado efusivamente por todos os empregados. Um deles fez-lhe um pedido: “Já tenho as camisolas dos clubes onde jogaste, mas não tenho a da selecção de Portugal…”. Figo alertou-o: “No es muy guapa…”. O empregado disse que não se importava e encaminhou-nos para a mesa num sítio mais reservado. O jantar foi bastante agradável, regado a champanhe, trocámos memórias e saciámos novidades e, sobretudo, explicámos o que pretendíamos fazer nos dias seguintes.
            Na manhã seguinte, eu e o Nuno fomos dar um passeio por Barcelona. Fomos à Sagrada Família, que me impressionou imenso pela envergadura, pela altura e pela decoração, repleta de guindastes para concluir a obra que a morte prematura de Gaudí não permitiu – sentindo-me completamente frustrado por não a conseguir fotografar por inteiro. E ainda fomos a Barceloneta, almoçámos no Porto Olímpico, subimos a Montjuic e visitámos o estádio olímpico, onde na altura jogava o outro clube da cidade, o Espanyol.





As duas semanas deram para acompanhar o jogador português, para passear por Barcelona, para assistir aos treinos e para assistir a mais um jogo, frente ao Sporting Gijón. E foi nessa noite que vi o Camp Nou quase repleto, foi nessa noite que ouvi pela primeira vez o hino do Barça e foi ainda nessa noite que escutei as músicas entoadas pelos hinchas dedicadas a Figo. O português tinha Barcelona a seus pés e eu, quando parti, senti que a cidade também me tinha ficado no coração. Admito que, então, fiquei com um fraquinho pelo FC Barcelona, rapidamente desfeito quando, anos depois, Cristiano Ronaldo se mudou de armas e bagagens para o Real ;Madrid. Hoje, não gosto do F.C. Barcelona, mas continuo a gostar, e muito, de Barcelona.

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