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16 abril 2015

Avalanche de golos no Liechtenstein

Tenho de admitir que as minhas primeiras viagens além-fronteiras foram, digamos assim, atrás de uma bola de futebol.
Na sequência de quem dava os primeiros passos na carreira, depois do jornal “Sporting”, fui aliciado por um convite de um jornal à escala nacional, a já extinta “Gazeta dos Desportos”. Era um ritmo diferente ao que estava habituado, implicando estar diariamente na redacção, sobretudo durante as tardes, e só sair alta noite quando o jornal já tinha a edição fechada. Mas gostei da experiência, daquilo de trabalhar numa redacção com diversos jornalistas e sentir o stress de escrever as notícias a tempo e horas. Quem me acompanhou nessa transição foi o antigo chefe de redacção do “Sporting”, o saudoso Galvão Correia, então investido na função de director, o fotógrafo Nuno Correia, mais como colaborador esporádico, e Gonçalo Pereira, do qual nunca me desliguei até hoje desde os tempos do semanário “leonino”.
Estava há pouco tempo na “Gazeta” quando me é entregue o primeiro trabalho de vulto: acompanhar a selecção nacional ao Liechtenstein, onde iria disputar um jogo da fase de apuramento para o Campeonato da Europa de 1996, que teria lugar em Inglaterra.

A ideia de acompanhar a selecção e logo para um país que sempre me suscitou curiosidade, deixou-me extremamente entusiasmado. Só que o jornal apenas conseguiu os vouchers para o dia seguinte em relação à partida da equipa e dos repórteres dos outros jornais.
“Não te preocupes: chegas ao aeroporto de Zurique, terás lá alguém à tua espera que te levará até ao hotel. E boa viagem!” Saí do aeroporto da Portela confiante e a viagem até Zurique correu lindamente, apenas com um senão: depois de ter desembarcado, não tinha ninguém à minha espera. Deixei passar meia hora, uma hora, hora e meia… e percebi que teria de me desenrascar por minha conta e risco. Ainda no aeroporto, perguntei a um funcionário o que teria de fazer para ir para o Liechtenstein e, diligentemente, este informou-me que bastaria descer as escadas rolantes para o piso inferior, para a gare dos comboios, dirigir-me a um guichet e comprar o bilhete. Quando lá cheguei, pedi um bilhete para Triesenberg, o local onde estavam hospedados os restantes jornalistas. A funcionária foi extremamente prestável:
 ̶  Não tem nada que saber! Vai apanhar o comboio na linha 2, que parte daqui a 7 minutos e, três quartos de hora depois, há-de chegar à fronteira, onde desembarca. Resta apanhar a camioneta do lado de lá da linha do comboio, que parte 10 minutos depois e chegará a Triesenberg em mais 8 minutos.


 Lago de Zurique

E, espantosamente, assim foi. Exactamente assim. Compreendi, então, o porquê da precisão dos relógios suíços. Entrei no comboio, vi desfilar pela janela o lago de Zurique, as pastagens verdejantes e alguns cumes alpinos. Cheguei à fronteira, apanhei a camioneta e foi nela que atravessei a ponte sobre o rio Reno que separa os dois estados. A primeira paragem foi em Vaduz, a pequena capital que consiste numas quantas ruas mas que, para espanto meu, até tem semáforos num cruzamento – “o” semáforo! Depois, foi seguir montanha acima até Triesenberg.
Entrei no pequeno mas acolhedor hotel – cuja proprietária era uma esquiadora detentora de uma medalha do bronze nuns Jogos Olímpicos de Inverno – e aprestei-me para fazer o check-in. Cumpridas as formalidades, dirigi-me em inglês ao funcionário para saber determinados pormenores, quando este me responde em português. Franzi o sobrolho, mas logo fiquei com um sorriso estampado no rosto quando li o seu nome gravado num crachá que tinha ao peito: José Silva. Mesmo assim, ainda fiquei surpreendido quando o senhor José Silva falou com outros funcionários em português e estes responderam na língua de Camões. À excepção da dona, todos ali eram portugueses!


O hotel Oberland, em Triesenberg

Fui pousar as malas ao quarto e saí para a rua. Dali, da entrada do hotel, os meus olhos açambarcavam o panorama em redor. Tudo era verde e florido, tudo estava arranjado, tudo estava imaculadamente limpo. O Liechtenstein é assim – um país em miniatura que ocupa a vertente de uma montanha, mas que é um mimo. Começa lá em baixo, em Vaduz, e acaba no topo. Do lado de lá do cume, já é Áustria.

Apesar de apenas ter permanecido três escassos dias, o que não faltaram foram peripécias. Na véspera do dia do jogo, eu e um grupo de colegas fomos almoçar a um restaurante em Vaduz e nenhum de nós conseguiu conter a admiração pelos carros que estavam no parque de estacionamento: lado a lado, conviviam Ferraris, Lamborghinis, Porsches, Maseratis, Jaguares. Grandes bólides, o que nos levou a inquirir para quê esta necessidade num país tão pequenino e com limites de velocidade apertadíssimos. Será que passavam a vida a subir e a descer a montanha?


Triesenberg

            Nesse mesmo dia, decidimos prolongar a estadia em Vaduz, que, diga-se, não tem muito para ver. E ao fim da tarde, quase já noite, passámos pelo hotel onde estava instalada a selecção. Umas conversas soltas com os jogadores e, como a fome começou a apertar, perguntámos ao balcão se havia alguma coisa que se pudesse comer. A resposta veio em português̶:
̶ Pode-se arranjar uma sandochas, com queijo e fiambre  ̶ , disse-nos o prestável funcionário João Gomes. No fim do repasto, perguntámos ao “senhor João” quais os horários das camionetas que iam para cima, para Triesenberg. Cofiou o bigode pensativamente e disse que a última passava por ali dentro de 20 minutos. Óptimo, estamos bem a tempo.
Fomos para a paragem e ficámos à espera. Cinco minutos… Dez minutos… Meia hora… e nada de camioneta. Uma hora depois desistimos e decidimos encetar a caminhada a pé montanha acima, pela estrada. De vez em quando animava-se a alma quando se ouvia o som de um motor e as luzes de faróis, mas rapidamente se desfaziam as ilusões quando percebíamos que os carros não paravam. O frio devia ser grande, mas não o sentíamos – deitávamos os bofes de fora perante tamanha empreitada. Já não nos dávamos ao trabalho de esticar os polegares a pedir boleia quando, inesperadamente, um carro parou a uns metros à frente. Corremos para lá e foi com alegria que ouvimos o condutor:
̶  Triesenberg? Hop in.
Entrámos os três e não escondíamos o riso pela peripécia. De súbito, o nosso “salvador” vira-se para trás e pergunta-nos:
 ̶  São portugueses?   ̶  assim mesmo, em português! Ele também, como foi fácil de adivinhar, apenas mais um dos milhares que ali labutam. Despedimo-nos, à porta do hotel, com desejos mútuos de vitória para o jogo do dia seguinte.
            No dia do jogo, o principado estava em festa. Acorreram milhares de visitantes, emigrantes portugueses da ali, mas também muitos outros vindos da vizinha Suíça e do Luxemburgo, ao ponto de o estádio de Vaduz ter sido reforçado com uma bancada suplementar. Instalado na improvisada bancada de imprensa, foi com regozijo que vi milhares de bandeiras verdes e rubras serem agitadas, dezenas de faixas com incentivos a Portugal e a alegria daquela gente por, durante 90 minutos, se sentirem mais perto da pátria. É um sentimento que me assalta sempre que estou fora e mais sinto o apelo de uma certa portugalidade. E ali, em que ¾ do estádio eram ocupados por apoiantes portugueses, também eu me senti contagiado por esta onda. Quanto ao jogo em si, pouco há que acrescentar: uma esmagadora vitória por 0-7 – uma autêntica avalanche de golos nos Alpes.
            Findo o jogo, havia que rumar o mais rapidamente possível para o hotel – as redacções estavam à espera dos relatos dos enviados-especiais. Peguei no portátil e, antes de começar a escrever, olhei à minha volta: todos os meus colegas estavam nos respectivos quartos, mas de portas abertas, que permitia descortinar a azáfama colectiva – e sorri de satisfação.
Uma vez despachado o serviço, a fome apertou e de que maneira, pois nenhum de nós, à excepção de Gabriel Alves, da RTP, havíamos jantado. Simpaticamente, alguém do hotel conseguiu providenciar-nos umas quantas sandes de presunto, que nos pareceram um manjar dos deuses, seguidas de um delicioso gelado caseiro de frutos silvestres. Estávamos neste entretém quando, de súbito, somos alertados pelo som de foguetes, e corremos para a varanda. A vista era extraordinária: um fantástico fogo-de-artifício cobria os céus do Liechtenstein.
Ficámos ali extasiados a olhar, quando se abeirou a proprietária do hotel:
̶ Hoje é feriado nacional, é o Dia do Príncipe. Há fogo-de-artifício, o povo sai à rua e o castelo é aberto a todos os súbditos que o queiram visitar e cumprimentar. Ah, e todo o palácio está repleto de iguarias para os visitantes!
Foi esta a última visão que tive do Liechtenstein. Uma espécie de país dos contos de fada, com direito a príncipes, princesas e tudo. Além dos Lamborghinis e dos Maseratis, claro.

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