Lembro-me, por volta dos 8 anos de idade, de passar horas a fio a olhar para livros, atlas e colecções de cromos a absorver pormenorizadamente as bandeiras dos países. Ao mesmo tempo, fazia pequenas fichas, escritas à mão, com os dados mais relevantes de todas as nações do mundo: a respectiva bandeira, claro está, pintada a caneta de feltro, a área, o nome da capital, o número de habitantes, a moeda e a língua oficial. Eram estas, à época, as minhas viagens.
Lembro-me, também, da curiosidade que tinha em
relação a qualquer coisa que fosse fora do meu “mundo”, que se resumia ao
caminho de camioneta casa-escola-casa, uma ou outra viagem de automóvel com os
meus pais, e a paisagem que desfilava pela janela do comboio da linha da Beira
Baixa, sempre que ia de férias para Castelo Branco e para Sarnadas de Ródão,
uma quase incógnita aldeia a 14 quilómetros da capital de distrito. Como ainda
recordo, como se fosse hoje, a minha primeira grande “aventura” para fora deste
“mundo”: com os meus pais e irmão ao Algarve, esse pedaço de Portugal para mim
tão longínquo, e por ter, pela primeira vez, pisado solo estrangeiro em
Ayamonte e Isla Canela. Estranhamente, não me pareceu tão diferente do que
estava à espera, mas foi inolvidável ouvir alguém falar castelhano.
Mas o que realmente me marcou a vida foi a
primeira viagem a sério fora da fronteira. E que iniciação! Tudo foi decidido
num ápice, naqueles serões noite dentro na cave do meu amigo e vizinho do lado,
Miguel Coelho. Conversa puxa conversa e ficou estabelecido: vamos fazer Inter-rail!
Naquela altura, tinha eu 20 anos, o famoso passe era diferente do de hoje –
tinha limite de idade e não estava dividido em zonas, era-se livre de viajar
por todos os países que englobavam o acordo. Mas eu estava relativamente
limitado: como a minha mãe era funcionária da CP, eu pagava menos que os outros
mas, em contrapartida, tinha de definir as fronteiras por onde entrava e saía.
No dia aprazado, 15 de Agosto de 1984, embarcámos
de Santa Apolónia e mal conseguíamos esconder a excitação quando o Lusitânia
Expresso iniciou lentamente a sua marcha, já a noite caíra. Parámos no
Entroncamento e, depois, apenas na fronteira. A escuridão que vinha da janela
não dava para descortinar nada e o sono, entretanto, começou a chegar. Dado o
desconforto das cadeiras, resolvi estender-me ao comprido no corredor –
estiquei o fino colchão azul de espuma, arrumei a mochila amarelo-mostarda com
a bandeira portuguesa cosida e deitei-me sobre esta improvisada almofada. O
truc-truc-truc da linha férrea embalou-me, e adormeci a pensar que, no dia
seguinte, já estaria em Madrid.
Não vou descrever exaustivamente a viagem, lembro
apenas as belas memórias que me ficaram, ainda que o trajecto tenha sido
cumprido quase sem paragens até ao destino final: as horas de espera em Madrid;
a corrida para apanhar o comboio em Barcelona; a avidez com que sorvi a
paisagem da Côte d’Azur; a conversa noite fora com duas jovens italianas entre
Nice a Veneza; as horas perdidas na fronteira da antiga Jugoslávia, onde os
guardas revistavam minuciosamente as malas dos locais; a penosa travessia da
nação forjada por Tito e a arreliadora dor de dentes que me acompanhou de
Belgrado até Skopje; a entrada na Grécia em acalorada conversa com um francês
que me tentava convencer da superioridade dos Galoises em relação ao SG Ventil;
a chegada a Atenas e a subida à Acrópole sob um sol abrasador; a pouco
entusiasmante volta ao Peloponeso, com passagem por Corinto, Kalamata e Patras;
o festim de cores no porto do Pireu; o embarque para uma ilha tirada à sorte e
onde seria passado a maior parte do tempo. Olhos fechados sobre o mapa do mar
Egeu, umas voltas com o indicador ao calhas e destino traçado: Ios, uma ilha a
meio caminho entre a costa e a ilha de Santorini. Aqui, foi uma semana de sol,
praias infestadas de pedras, rochas, alemães e ingleses; noites animadas entre
esplanadas e bares, com cerveja e ouzo
a rodos e raparigas com muito menos roupa do que nacionalidades, o parque de
campismo onde dormimos numa espécie de estacionamento de sacos-cama tendo como
vizinhas umas suecas e um israelita, o regresso pelo mesmo caminho, mas com uma
paragem de oito horas em Veneza – que deu para uma alegre vista de olhos
enquanto trincava um pêssego delicioso e para a pior pizza da minha vida numa
esplanada à beira-canal, o desfiar de paisagens e, por fim, o encontro em
Barcelona com um sexagenário norte-americano que se auto-intitulava de Zorba.
Só tínhamos comboio no dia seguinte e estávamos de bolsos praticamente vazios,
pelo que a caridosa personagem de sandálias, calções de ganga e camisa pejada
de palmeiras decidiu dar uma de benemérito e pagou-nos um jantar numa tasca
horrenda, o quarto da pensão e, ainda, o bilhete no Talgo, o rápido comboio
espanhol para o qual os portadores de inter-rail não tinham acesso.
Foi assim que entrámos em Portugal – parando no
Entroncamento para gastar os últimos 25 escudos num maço de SG Ventil e no
jornal “A Bola” – e a paragem definitiva em Santa Apolónia. E
um misto de sensações: por um lado, a tristeza pelo fim da aventura, por outro,
a alegria do regresso ao meu país, à minha cama, aos meus amigos, às novidades
futebolísticas com o meu pai e irmão e à comida da minha mãe. No arquivo da
memória, para sempre, meia-dúzia de fotos carcomidas, bilhetes de transportes,
rótulos de garrafas e a nostalgia das noites mal dormidas nas estações de
comboio europeias, falando e convivendo com pessoas de todas as nacionalidades.
Foi a minha “internacionalização” – e a vontade de conhecer mais mundo.
Belo arranque, bela história. A primeira de muitas, espero. Grato por entrar logo a bordo na primeira viagem do Trip Teasing!
ResponderEliminarMuito bom. Deste cor, sentimento é entusiasmo. Espero no próximo post mais aventuras e desventuras de um romântico aventureiro.
ResponderEliminarParabéns.
Grande!
ResponderEliminarLê-se com uma ligeireza encantadora! Gostei muito... E valeu a pena relembrar também nesta experiência o meu inter-rail, que fiz passados mais de 20 anos do teu. ha ha ha Aguardo pelo desenrolar desse novelo de belas histórias...
ResponderEliminarGonçalo, Marquesa, Joe e Rita, muito obrigado pelas palavras e pelo incentivo. Espero que apreciem os capítulos seguintes!
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