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03 abril 2015

O "bichinho" já lá estava





Lembro-me, por volta dos 8 anos de idade, de passar horas a fio a olhar para livros, atlas e colecções de cromos a absorver pormenorizadamente as bandeiras dos países. Ao mesmo tempo, fazia pequenas fichas, escritas à mão, com os dados mais relevantes de todas as nações do mundo: a respectiva bandeira, claro está, pintada a caneta de feltro, a área, o nome da capital, o número de habitantes, a moeda e a língua oficial. Eram estas, à época, as minhas viagens.
Lembro-me, também, da curiosidade que tinha em relação a qualquer coisa que fosse fora do meu “mundo”, que se resumia ao caminho de camioneta casa-escola-casa, uma ou outra viagem de automóvel com os meus pais, e a paisagem que desfilava pela janela do comboio da linha da Beira Baixa, sempre que ia de férias para Castelo Branco e para Sarnadas de Ródão, uma quase incógnita aldeia a 14 quilómetros da capital de distrito. Como ainda recordo, como se fosse hoje, a minha primeira grande “aventura” para fora deste “mundo”: com os meus pais e irmão ao Algarve, esse pedaço de Portugal para mim tão longínquo, e por ter, pela primeira vez, pisado solo estrangeiro em Ayamonte e Isla Canela. Estranhamente, não me pareceu tão diferente do que estava à espera, mas foi inolvidável ouvir alguém falar castelhano.
Mas o que realmente me marcou a vida foi a primeira viagem a sério fora da fronteira. E que iniciação! Tudo foi decidido num ápice, naqueles serões noite dentro na cave do meu amigo e vizinho do lado, Miguel Coelho. Conversa puxa conversa e ficou estabelecido: vamos fazer Inter-rail! Naquela altura, tinha eu 20 anos, o famoso passe era diferente do de hoje – tinha limite de idade e não estava dividido em zonas, era-se livre de viajar por todos os países que englobavam o acordo. Mas eu estava relativamente limitado: como a minha mãe era funcionária da CP, eu pagava menos que os outros mas, em contrapartida, tinha de definir as fronteiras por onde entrava e saía.
No dia aprazado, 15 de Agosto de 1984, embarcámos de Santa Apolónia e mal conseguíamos esconder a excitação quando o Lusitânia Expresso iniciou lentamente a sua marcha, já a noite caíra. Parámos no Entroncamento e, depois, apenas na fronteira. A escuridão que vinha da janela não dava para descortinar nada e o sono, entretanto, começou a chegar. Dado o desconforto das cadeiras, resolvi estender-me ao comprido no corredor – estiquei o fino colchão azul de espuma, arrumei a mochila amarelo-mostarda com a bandeira portuguesa cosida e deitei-me sobre esta improvisada almofada. O truc-truc-truc da linha férrea embalou-me, e adormeci a pensar que, no dia seguinte, já estaria em Madrid.
Não vou descrever exaustivamente a viagem, lembro apenas as belas memórias que me ficaram, ainda que o trajecto tenha sido cumprido quase sem paragens até ao destino final: as horas de espera em Madrid; a corrida para apanhar o comboio em Barcelona; a avidez com que sorvi a paisagem da Côte d’Azur; a conversa noite fora com duas jovens italianas entre Nice a Veneza; as horas perdidas na fronteira da antiga Jugoslávia, onde os guardas revistavam minuciosamente as malas dos locais; a penosa travessia da nação forjada por Tito e a arreliadora dor de dentes que me acompanhou de Belgrado até Skopje; a entrada na Grécia em acalorada conversa com um francês que me tentava convencer da superioridade dos Galoises em relação ao SG Ventil; a chegada a Atenas e a subida à Acrópole sob um sol abrasador; a pouco entusiasmante volta ao Peloponeso, com passagem por Corinto, Kalamata e Patras; o festim de cores no porto do Pireu; o embarque para uma ilha tirada à sorte e onde seria passado a maior parte do tempo. Olhos fechados sobre o mapa do mar Egeu, umas voltas com o indicador ao calhas e destino traçado: Ios, uma ilha a meio caminho entre a costa e a ilha de Santorini. Aqui, foi uma semana de sol, praias infestadas de pedras, rochas, alemães e ingleses; noites animadas entre esplanadas e bares, com cerveja e ouzo a rodos e raparigas com muito menos roupa do que nacionalidades, o parque de campismo onde dormimos numa espécie de estacionamento de sacos-cama tendo como vizinhas umas suecas e um israelita, o regresso pelo mesmo caminho, mas com uma paragem de oito horas em Veneza – que deu para uma alegre vista de olhos enquanto trincava um pêssego delicioso e para a pior pizza da minha vida numa esplanada à beira-canal, o desfiar de paisagens e, por fim, o encontro em Barcelona com um sexagenário norte-americano que se auto-intitulava de Zorba. Só tínhamos comboio no dia seguinte e estávamos de bolsos praticamente vazios, pelo que a caridosa personagem de sandálias, calções de ganga e camisa pejada de palmeiras decidiu dar uma de benemérito e pagou-nos um jantar numa tasca horrenda, o quarto da pensão e, ainda, o bilhete no Talgo, o rápido comboio espanhol para o qual os portadores de inter-rail não tinham acesso.
Foi assim que entrámos em Portugal – parando no Entroncamento para gastar os últimos 25 escudos num maço de SG Ventil e no jornal “A Bola” – e a paragem definitiva em Santa Apolónia. E um misto de sensações: por um lado, a tristeza pelo fim da aventura, por outro, a alegria do regresso ao meu país, à minha cama, aos meus amigos, às novidades futebolísticas com o meu pai e irmão e à comida da minha mãe. No arquivo da memória, para sempre, meia-dúzia de fotos carcomidas, bilhetes de transportes, rótulos de garrafas e a nostalgia das noites mal dormidas nas estações de comboio europeias, falando e convivendo com pessoas de todas as nacionalidades. Foi a minha “internacionalização” – e a vontade de conhecer mais mundo. 

5 comentários:

  1. Belo arranque, bela história. A primeira de muitas, espero. Grato por entrar logo a bordo na primeira viagem do Trip Teasing!

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  2. Muito bom. Deste cor, sentimento é entusiasmo. Espero no próximo post mais aventuras e desventuras de um romântico aventureiro.
    Parabéns.

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  3. Lê-se com uma ligeireza encantadora! Gostei muito... E valeu a pena relembrar também nesta experiência o meu inter-rail, que fiz passados mais de 20 anos do teu. ha ha ha Aguardo pelo desenrolar desse novelo de belas histórias...

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  4. Gonçalo, Marquesa, Joe e Rita, muito obrigado pelas palavras e pelo incentivo. Espero que apreciem os capítulos seguintes!

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